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Análise: Alemanha deixou sensação de abandono no norte do Afeganistão

Nicola Abé

Especial - Parte 1 de 2

Há seis meses, os militares alemães se retiraram de Kunduz, no norte do Afeganistão. De lá para cá, a segurança regional ruiu e muitos dos que foram deixados para trás se sentem abandonados. Alguns dizem que a partida ocorreu cedo demais.   O capitão Feridoon Hakimi está sentado ao lado de uma enorme churrasqueira, antes usada pelos alemães para assar linguiça, mascando amêndoas e semicerrando os olhos. Não há uma nuvem no céu e o sol do meio-dia está incidindo sobre o antigo campo militar alemão em Kunduz, no norte do Afeganistão. Ao lado dele está uma placa solitária em alemão, indicando a localização de um certo "Büro Baumlade".   Fazem seis meses desde que os amigos e aliados alemães de Hakimi deixaram o campo. Todas as vagas para helicópteros e veículos blindados estão vazias. O dirigível branco, que antes mantinha câmeras no alto para monitorar os arredores imediatos do campo, não voa mais no céu acima.   "Nós não precisamos de reconhecimento", diz Hakimi, 32 anos, o novo comandante do campo que supervisiona as tropas do Exército Nacional Afegão posicionadas aqui. "Nós temos nossos olhos." O dirigível, ele diz sorrindo, era um desperdício de dinheiro. Hakimi exibe uma barba cuidadosamente aparada e veste sandálias de borracha.   Seus olhos se voltam para o horizonte, onde as montanhas estão lentamente ficando verdes, indicando a chegada da primavera. Hakimi sabe que o verde também significa que o Taleban voltará em breve.   Por 10 anos, a Alemanha foi responsável pela província de Kunduz, como parte de seu papel na Força Internacional de Assistência à Segurança (ISAF, na sigla em inglês). Foi a primeira guerra real da qual participou a Bundeswehr, como são conhecidas as forças armadas da Alemanha, e as metas de Berlim eram elevadas. Os especialistas em desenvolvimento alemães ajudariam a estender os direitos da mulher, a democracia seria promovida e a economia cresceria de forma significativa. Bilhões de euros foram disponibilizados –e o sangue de soldados alemães foi derramado. Kunduz foi um local de grande sacrifício.   Até 6 de outubro de 2013. Naquele dia, a Alemanha transferiu o campo para o Afeganistão.   'Cedo demais'   "Eles fugiram", resmunga o vice-chefe de polícia da província de Kunduz em seu gabinete, gesticulando desdenhosamente. "Eles simplesmente fugiram. Era cedo demais."   "Era cedo demais. Foi como uma fuga." é possível ouvir quase a mesma coisa das bocas dos soldados alemães, alguns dos quais comparando a partida da Bundeswehr a dos americanos de Saigon, no final da Guerra do Vietnã. "Se há uma coisa em que a Bundeswehr é realmente boa, é em se retirar", é o sentimento que costuma ser ouvido no governo em Berlim atualmente.   Mas o que realmente os alemães conseguiram realizar em Kunduz e pelo que 25 alemães morreram na região? O que todo o dinheiro comprou? O que resta da missão? Berlim preferiria não fornecer resposta a essas perguntas: uma avaliação completa do envolvimento no Afeganistão não está na agenda.   Entretanto, respostas podem ser encontradas na própria província de Kunduz. Quanto mais perto alguém se aproxima do antigo campo alemão, mais vazias as estradas se tornam. Não há árvores para bloquear a visão do horizonte distante; ocasionalmente, um tambor de óleo ou carro incendiado surge à beira da estrada. O serviço de entrega de pizza antes bancado pelos alemães fechou suas portas. Alguns poucos soldados uniformizados estão colocando arame farpado na entrada do campo. "Nós estamos aqui para proteger os prédios", diz Said Muyer, 25 anos, da polícia afegã. Ele diz que está basicamente no comando, acrescentando o comandante real raramente aparece.   A estrada passa por guaritas vazias e sacos de areia rasgados a caminho de uma cidade fantasma de ruas largas, quartéis vazios e o espaço aberto onde antes helicópteros pousavam e decolavam. Parece um assentamento de alienígenas, que permaneceram por algum tempo, mas então partiram após perceberem que o planeta era inóspito –apesar das academias de ginástica, bares e da grande churrasqueira alemã.   Cerca de 2 mil soldados antes estavam no campo, mas há algumas poucas relíquias da presença deles entre as ruínas: uma lata de alumínio que antes continha carne processada, pacotes de mistura para suco e algumas poucas fatias de pão integral.   "Eles só deixaram lixo para trás", diz Muyer, chutando um recipiente de goulash de batata; "Nós não comemos essas coisas." Ele abre a porta que leva ao refeitório, dentro do qual as mesas e cadeiras estão ordeiramente empilhadas. "Tudo está trancado", ele diz. Muyer diz que os refrigeradores já tinham sumido quando ele chegou, vendidos no mercado da cidade.   Fuga para a Alemanha   Muyer e poucas dezenas de outros estão vivendo em três dos cerca de 50 prédios do campo, construídos originalmente por Berlim ao custo aproximado de 126 milhões de euros. Onde está o centro de treinamento da polícia, mencionado em um relatório de progresso de janeiro produzido pelo Ministério das Relações Exteriores? Muyer parece confuso e balança a cabeça, dizendo que é a primeira vez que ouve a respeito. Alguns poucos de seus homens estão jogando vôlei, enquanto outros estão preparando feijão para o jantar. Um quer saber qual é a melhor forma de fugir para a Alemanha.   As paredes de um prédio chamado "Dresden" estão rachadas, enquanto água pinga do teto no "Frankfurt". "Nós não somos encanadores", diz Muyer.   No meio desta cidade fantasma em decadência, Hakimi, o comandante do exército, está lutando –de sandálias de borracha– para manter uma aparência de ordem e normalidade. Ele e seus homens são vizinhos de Muyer e seu contingente policial, mas a pequena área sob controle de Hakimi é separada por um muro. E é como se Hakimi estivesse tentando manter uma mini-Alemanha, em desafio ao declínio ao redor. Não há lixo visível, não há buracos nas ruas e até mesmo os cedros que margeiam as ruas ainda estão verdes. "Duas vezes por semana, todos os soldados devem se reunir e ajudar na limpeza", diz Hakimi, uma rotina introduzida por ele. Hakimi também trouxe dois painéis de energia solar para compensar a falta frequente de eletricidade que agora atormenta o campo, que depende da rede elétrica de Kunduz após os alemães removerem seus geradores.   O comandante fala com entusiasmo de sua época servindo ao lado dos alemães. Eles costumavam se sentar ao redor de uma fogueira bebendo vinho e cerveja e até mesmo cozinhavam juntos, ele diz. Ele ficou particularmente impressionado com a confiança dos alemães. No verão, eles dormiam lado a lado em suas camas em Baghlan. "Eles realmente confiavam em nós", diz Hakimi, semicerrando os olhos ainda mais.   Então ele começa a falar sobre o inverno passado, o mais difícil de sua vida: foi o inverno em que os alemães partiram. Hakimi tem uma tatuagem de uma lua crescente e uma estrela entre seu polegar e dedo indicador, feita por um companheiro de campo de batalha quando Hakimi estava lutando nas montanhas contra o Taleban, como membro da Aliança do Norte. "Face a face", ele diz, descrevendo a campanha. Ele esteve em guerra por toda sua vida, mas nada se compara ao inverno passado.   Uma pausa entre combates   Ele passou grande parte dele fazendo repetidas visitas à província de Badakhshan. Estava frio, ele diz, e seus homens não tinham botas apropriadas. Não havia aquecimento, faltava energia elétrica constantemente e eles ficavam repetidamente sem combustível. Os rebeldes, diz Hakimi, continuam tão imprevisíveis quanto sempre foram. Ele diz que contou com apoio aéreo da ISAF apenas no início de sua incursão em Badakhshan, e apenas por poucos dias.   "O moral do inimigo melhorou", ele diz. "Eu vi muitos de meus homens morrerem." Dos 720 homens sob seu comando, apenas cerca de 150 estão no campo. O restante está combatendo em outros lugares e Hakimi, também, pode ser enviado para combate a qualquer momento.   E então fica imediatamente claro que a pequena e isolada Alemanha onde Hakimi se encontra tem pouco a ver com sua realidade. O campo foi o núcleo da missão alemã no Afeganistão por 10 anos; para Hakimi, é apenas um local onde pode fazer uma pausa entre combates.   Em Berlim, os políticos gostam de falar sobre o número de garotas afegãs que agora podem frequentar a escola e quão bem transcorreram as eleições. "Uma vida normal é possível ao longo das principais artérias de tráfego", disse recentemente um general alemão perante os jornalistas em Berlim. Nem tudo está ruim no Afeganistão; essa é a mensagem. Mas a segurança no norte está ruindo, uma verdade que até mesmo os relatórios do governo são forçados a reconhecer, e a situação parece ainda mais frágil quando se olha de perto as coalizões efêmeras e as pessoas que dependem delas.   Os homens nas forças policiais locais do Afeganistão, por exemplo, representa uma espécie de último baluarte no combate ao terrorismo. Os militares americanos treinaram os policiais auxiliares mal remunerados como forma de reforçar a polícia comum e os militares. A ideia era exibir uma maior presença nas áreas rurais, onde, caso contrário, não haveria ninguém.   Hoje, a polícia auxiliar pode ser encontrada em postos avançados cujo acesso só é possível por estradas de terra; eles consistem geralmente de pouco mais que alguns poucos sacos de areia e colchões no chão. Os policiais são armados com fuzis Kalashnikov e circulam em motocicletas, e não é raro perderem um olho ou um braço –ou mesmo suas vidas– em bombas detonadas à beira da estrada. Alguns comandantes até mesmo pararam de deixar a segurança de seus lares. Organizações de direitos humanos acusam as unidades locais de polícia de extorquirem dinheiro de proteção da população ou de cometerem atos de violência. Também dizem que os senhores da guerra locais infiltraram suas próprias milícias nas unidades policiais. Quando é perguntado aos membros da força policial no distrito de Chahar Dara sobre seus laços com o notório senhor da guerra Mir Alam, por exemplo, eles permanecem em silêncio.

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