  Quinta-feira, 16 de janeiro de 2003  | Cristovam Buarque, ministro da Educação do Brasil: "Recompensaremos os analfabetos que aprenderem a escrever"
Juan Arias
BRASÍLIA -- Cristovam Buarque já foi chamado de "semeador de utopias". Engenheiro e doutor em economia pela Sorbonne de Paris, é um dos ideólogos da equipe do presidente Lula e tem mais de 20 livros publicados. Foi reitor da Universidade de Brasília e trabalhou no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). De 1995 a 1998 foi governador do Distrito Federal (Brasília), onde revolucionou os esquemas de ensino.
Exilado durante oito anos na época da ditadura militar, pertence à ala moderada do Partido dos Trabalhadores (PT). Em seu novo gabinete em Brasília, conversou em espanhol durante duas horas com este jornal enquanto preparava em seu computador os projetos de reforma.
Pergunta: O senhor é ministro da Educação de um governo cujo presidente sofreu na própria carne o fato de não ter podido ir à escola. O que vão fazer com o ensino?
Resposta: Acelerar um processo já iniciado nos últimos oito anos por meu antecessor, Paulo Renato Souza, e daremos uma guinada à esquerda.
P.: O que isso significa na prática?
R.: Que não se pode continuar permitindo que em um país que está entre as dez primeiras potências econômicas do mundo, com 3 milhões de universitários e 2 milhões de professores, continue havendo 20 milhões de analfabetos adultos e que não haja escolas suficientes e dignas para 40 milhões de crianças. Precisamos de um novo modelo de escola e de universidade. Nossa escola em geral é ruim.
P.: Por onde vão começar?
R.: Já estamos preparando esse novo modelo de ensino específico para este país. O primeiro é que nenhuma criança deixe de ir à escola por pobreza da família. Segundo, que a escola seja digna e de qualidade, desde os conteúdos até o professor, passando pelos prédios e as equipes de trabalho. Para isso vamos intensificar o projeto já iniciado da chamada Bolsa Escola, que criei em Brasília e que o governo anterior adotou para todo o país: uma ajuda econômica para as famílias pobres desde que mandem seus filhos à escola. Só que até agora essa quantia de US$ 5 por mês era ridícula. Vamos aumentá-la consideravelmente.
P.: Mas o problema é que essas crianças entram na escola e a maioria pára no meio do caminho.
R.: Para incentivar que continuem estudando, abriremos para elas uma caderneta de poupança, com um valor que só poderão retirar quando terminarem com êxito os estudos primários.
P.: Suponhamos que esses milhões de crianças consigam chegar à escola secundária. O Brasil está preparado para o desafio?
R.: Aí vamos julgar o êxito ou o fracasso do governo. Sem dúvida no nível secundário o problema vai explodir. Temos que nos preparar. O governo vai ter de gastar muito com professores, escolas e livros para os alunos pobres. E deverá fazer isso sem comprometer os índices de inflação fixados.
P.: O drama da escola deste país é que esses milhões de professores são mal pagos, mal preparados e têm a auto-estima muito baixa.
R.: Um melhor preparo dos professores será uma tarefa fundamental de meu ministério. Eles vão ganhar mais, mas isso somente não seria suficiente. Temos que promover sua auto-estima. Isso já está sendo pesquisado por equipes de psicólogos do trabalho, sindicalistas e especialistas em pedagogia.
P.: O senhor disse que quer acabar com os 20 milhões de analfabetos adultos, como uma espécie de segunda abolição histórica, depois da da escravidão, 130 anos atrás. E que quer fazê-lo em quatro anos. Não é pura utopia?
R.: Não. Também se dizia que era utopia eliminar a escravidão. Vamos começar imediatamente esse projeto. Precisaremos de um exército de 62 mil pessoas. De onde vamos tirá-las? Em primeiro lugar dos professores que quiserem alfabetizar em cursos noturnos e que serão retribuídos pelo número de alfabetizados. Em segundo lugar vamos recorrer a estudantes universitários e ao mundo do voluntariado. E também recompensaremos os analfabetos por aprender a escrever. Não é justo que se pague aos professores da universidade que querem aperfeiçoar seus estudos e que não se faça o mesmo com quem quer aprender a ler e escrever.
P.: E como serão pagos esses alunos singulares?
R.: Para evitar abusos, receberão sua recompensa no momento em que sejam capazes, na escola, de redigir uma carta.
P.: O que o senhor pensa em fazer com a universidade, tão criticada hoje?
R.: A universidade está em crise em todo o mundo, e nós queremos no Brasil buscar um novo modelo que possa servir também para fora daqui. A crise mundial da universidade é dupla: o conhecimento cresce mais depressa que ela. Ficou obsoleta e antiquada, presa em seu imobilismo e endogamia. Se um professor não acompanhar a atualidade, chegará à aula e não saberá que os alunos já sabem que se descobriu uma nova montanha em Marte. E se o professor não dominar as novas técnicas digitais terá que sentir a humilhação de precisar perguntar aos alunos. E existe uma crise técnica, porque hoje o conhecimento transborda para fora da universidade, já estão sendo criadas universidades corporativas. O saber começa a não precisar da universidade clássica.
P.: Também há crises de conteúdo, não?
R.: Pense em um país como o Brasil, com sua pobreza brutal, onde existem os maiores especialistas do mundo em cirurgia plástica para embelezar as pessoas e não há especialistas nas doenças típicas dos pobres. Onde se dão cursos de nutrição para ensinar os ricos gordos a emagrecer e nunca cursos para ensinar os pobres magros a engordar. Creio que o Brasil poderia criar um novo modelo de universidade, porque hoje ele é o melhor retrato da humanidade. A Europa não é, porque a média da tragédia da humanidade ali é menor. Tampouco pode ser a África, onde a tragédia supera a média e além disso não tem recursos para combatê-la. O Brasil possui toda a tragédia e ao mesmo tempo os meios suficientes para impor um novo rumo. Talvez não seja casualidade que Lula seja brasileiro.
P.: O senhor, um dos ideólogos da nova via política brasileira, como vê essa revolução social pacífica que estão empreendendo?
R.: Creio que ainda não temos um rumo ideológico claro. Ainda não sabemos muito bem o que é o chamado lulismo. Precisaríamos de um grande debate sobre o tema e isso deveria sair da universidade. O PT é um partido de atitudes como a ética, a soberania nacional, a distribuição do trabalho, mas ainda lhe falta um corpo de doutrina, um modelo político, que é o que estamos tentando criar.
P.: O senhor é um leitor empedernido. O governo passado deu às escolas milhões de livros e dicionários. Vai manter essa política de ajuda aos alunos das classes mais necessitadas?
R.: Vamos ampliá-la. Este ano o governo dá para o primeiro grau 160 milhões de livros, o que já estava decidido pelo governo anterior. Queremos criar 150 mil bibliotecas familiares, uma para cada mil habitantes, com uma caixa de madeira com 50 livros que serão trocados todo mês. Uma grande empresa de logística já se dispôs a organizar isso. Os 80 mil carteiros também vão deixar livros nas casas, que recolherão depois de um certo período e trocarão por outros. Queremos criar uma grande paixão nacional pela leitura, pois estamos convencidos de que o futuro deste país só será construído com uma escola de qualidade e com cidadãos bem informados e amantes da boa leitura.
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
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