07/09/2005 Petróleo vive em 2005 verão em que tudo mudou Preços altos e produção em baixa deixam antever futuro sombrio Jean-Michel Bezat Em Paris O "coronel" Edwin L. Drake jamais teria imaginado, naquele dia de 27 de agosto de 1859, que o precioso óleo que jorrava do seu poço em Titusville (Pensilvânia) iria transformar para sempre a economia e a geopolítica mundiais. Que ele se transformaria no "ouro negro" para todos aqueles que dele se beneficiam e o "estrume do diabo" para todos os amaldiçoados da terra privados desta renda por governos corruptos.
 | | Helicóptero militar sobrevoa Nova Orleans; o furacão Katrina reduz a produção do óleo | Após cento e cinqüenta anos de extração ininterrupta e de consumo desenfreado, o mundo ingressou num período incerto: a US$ 70 o barril, o preço triplicou desde 2001, o que motiva muitos observadores, sempre mais numerosos a cada dia que passa, a garantirem que o mundo já se encontra na era pós-petróleo.
O ano de 2005 terá sido o da grande mudança. O que aconteceu no decorrer deste verão maluco em que o Nymex e o IPE, as "Bolsas" nova-iorquina e londrina do petróleo, pegaram fogo?
Estaríamos vivendo um "remake" dos choques precedentes, mas com um roteiro e atores diferentes daqueles dos anos 70? Quem tira proveito da explosão das cotações? Será que o preço do ouro negro poderá alcançar os US$ 100 o barril? Ou será que ele vai voltar a US$ 30, embora ele já tenha duplicado desde janeiro de 2004?
Segundo a definição herdada dos anos 70, um choque petroleiro é a conjunção de uma tensão nos mercados com uma crise política no Oriente Médio que provoca uma ruptura dos sistemas de abastecimento. O encadeamento das causas e dos efeitos é então fatal: explosão dos preços petroleiros e da inflação, aumentos sucessivos das taxas de juros, recessão.
A tensão nos mercados está mesmo ocorrendo, mas a intervenção americana no Iraque não teve o mesmo efeito recessivo que tivera o embargo da Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) sobre os países aliados de Israel (1973), que a Revolução Iraniana de 1979 e que a primeira guerra do Golfo em 1991. Por enquanto, a inflação permanece sob controle e o crescimento se mantém firme.
Diferentemente do que ocorreu nas crises anteriores, "a razão principal dos preços atuais do petróleo situa-se certamente na força da demanda", conforme analisou recentemente o diretor geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), Rodrigo Rato. "E não existe nenhuma perspectiva de uma diminuição desta demanda".
Os preços do barril estão altos e se aproximam daqueles de 1980 (quando eles superaram US$ 80 em valores de 2004), mas a alta se deve ao vigor da demanda americana e à espetacular decolagem econômica da China nos últimos cinco anos.
"A China! Ela é sempre alvo de acusações", se irrita Pierre Terzian, o diretor da revista especializada "Pétrostratégies". "Mas, são os americanos que consomem a maior quantidade de petróleo, e de longe!".
Mais de 20 milhões de barris por dia, o que equivale ao quarto da produção mundial, enquanto os chineses atualmente "queimam" apenas 7 milhões. Os Estados Unidos e a China, estes são mesmo os dois "oilholics" (dependentes de petróleo) que a revista semanal britânica "The Economist" satirizou numa charge corrosiva na sua edição de 27 de agosto: um Tio Sam e um dragão ventripotentes e saciados bebericando petróleo bruto com canudo.
Nem por isso a dinâmica da demanda chinesa deixa de ser espantosa. Desde 2000, o Império do Meio absorveu mais de um terço do superávit da produção mundial. Basta observar a ofensiva das companhias petroleiras (PetroChina, Cnooc) visando a adquirir as reservas das firmas e dos países da África, da Ásia central ou da América do Sul --e as ofertas cada vez mais elevadas que elas fazem sobre os preços dos ativos comprados no exterior-- para se convencer de que uma diminuição sensível da demanda não vai ocorrer tão cedo.
Os beneficiários deste grande boom são conhecidos. Os países produtores, que faturam atualmente mais de US$ 2 bilhões (R$ 4,8 bilhões) por dia. As companhias petroleiras, cujos dividendos nunca foram tão gordos. As firmas que vendem produtos e serviços derivados do petróleo, tais como a Halliburton, a Schlumberger ou a Technip, que viram seus cadernos de encomendas ficarem abarrotados de maneira desmedida.
Os grandes países industrializados, que têm a mão pesada sobre a TVA (impostos sobre valor agregado) e as taxas petroleiras, as quais podem representar mais de 80% do preço de um litro na bomba (como ocorre na França).
Tudo isso, sem deixar de mencionar os fundos de investimentos, que especulam a torto e a direito: cerca de um quarto do preço do barril (ou seja, US$ 18 de US$ 70) seria imputável aos especuladores, segundo afirma o ministro alemão da economia, Wolfgang Clement.
Os perdedores, por sua vez, são infinitamente mais numerosos. Entre eles estão os consumidores, que sofreram um aumento de cerca de 20% dos preços na bomba desde o início do ano. Os franceses pagam até 1,45 euro (R$ 4,30) por um litro de super 98 (de alta octanagem), o que amputa um poder aquisitivo que já está progredindo muito pouco.
Se este aumento ainda não se repercutiu sobre a inflação, é que muitos outros produtos fabricados na "oficina do mundo" em que se transformou a China (vestuário, informática, brinquedos, eletrodomésticos), e que são vendidos a preço baixo compensam esses custos petroleiros adicionais.
Até mesmo os americanos, que sempre estiveram acostumados com a gasolina barata, estão descobrindo hoje estupefatos que o preço do galão (3,78 litros) já está acima de US$ 3, um preço que corre o risco de aumentar depois da destruição ou da paralisação de um grande número de infra-estruturas petroleiras pelo furacão Katrina.
Em contrapartida, poucos são aqueles que dimensionaram o drama dos países pobres e fortemente endividados. A tal ponto que o G8 foi obrigado a fazer uma concessão, por ocasião da cúpula de julho, na Escócia, tomando a decisão de criar um fundo especial para amortecer este choque petroleiro.
A fatura energética é tanto mais pesada quanto mais obsoleta é a infra-estrutura de produção que, nos países pobres, consome em média duas vezes mais petróleo do que os ricos para a mesma produção. Esta eficácia medíocre é característica de grandes consumidores de petróleo tais como a China e a Índia.
Será que as cotações voltarão a cair rapidamente?
"Há poucas chances de ver os preços do petróleo recuarem sensivelmente, seja neste ano ou no próximo", responde o Centre for Global Energy Studies (CGES, Centro de Estudos da Energia Global) de Londres, no seu relatório mensal de agosto.
A menos que ocorra uma redução da pressão, temperam os seus especialistas, sobre as capacidades de produção e de refino que estão hoje saturadas, ou ainda um desaquecimento sensível do crescimento econômico, ou mesmo uma redução das incertezas políticas que pesam sobre certos países tais como a Arábia Saudita, o Iraque, o Irã e a Venezuela, entre outros.
Com isso, esses mesmos especialistas prevêem, portanto, que o preço do petróleo bruto "estará acima de US$ 50 o barril em 2006", também em decorrência da obsessão por constituir estoques em caso de crise grave e das "compras maciças dos especuladores".
Steve Forbes, o editor da revista que leva seu nome, é mais otimista.
Segundo ele, a sede pelo "ouro negro" que move os chineses e os indianos influi de maneira muito limitada sobre os aumentos das cotações. "O resto não passa de uma pura bolha especulativa", declarou ele recentemente, antes de fazer a "previsão audaciosa" de um barril "cujo preço terá caído dentro de doze meses para US$ 35-40".
Em quem devemos acreditar?
É tanto mais difícil responder que dois estabelecimentos financeiros donos de importantes investimentos no setor petroleiro também fizeram, na primavera de 2005, previsões radicalmente divergentes uma da outra: enquanto a Goldmann Sachs previa um barril a US$ 105 nos próximos meses, a Merill Lynch apostava num desmoronamento das cotações.
Quem pode prever a evolução dos preços do ouro negro no período de cinco ou dez anos?
Uma rápida análise da sua evolução ao longo dos últimos cinqüenta anos mostra que eles permaneceram ridiculamente baixos durante um século.
Um cúmulo para um combustível fóssil que precisou de milhões de anos para se constituir e do qual já foram utilizados entre 30% e 50%!
Considerados por meio desta perspectiva geológica, os produtos refinados do petróleo permanecem tão baratos quanto antes. Mesmo a mais de US$ 3 o galão, a gasolina é "dada" nos Estados Unidos (em razão das taxas reduzidas).
Mas qual homem político seria louco o suficiente para taxar o "american way of life"? De fato, as vans 4 x 4 e os outros veículos esportivos utilitários (SUV) ainda têm ótimas perspectivas pela frente.
As perspectivas para a produção dentro dos próximos anos tampouco estão promissoras. De quem a culpa? Das "majors", as gigantes do petróleo ocidentais (ExxonMobil, BP, Total, Eni...) e das companhias nacionais (Saudi Aramco...), que se recusam a fazer negócios com investidores estrangeiros. Elas não investiram o suficiente na exploração e na produção.
Neste caso está a Rússia, que passou a acusar uma estagnação da sua produção e corre o risco de extrair menos petróleo a partir de 2007, segundo alertou recentemente o CEO da Loukoil, a principal sociedade petroleira russa. Por sua vez, a Indonésia passou a importar mais do que ela exporta, embora disponha de confortáveis reservas em alto-mar, perto da sua orla.
Duas incógnitas pesam consideravelmente sobre o futuro: o ritmo do crescimento do consumo e o nível das reservas.
De que modo vem progredindo a demanda dos países emergentes da Ásia ou da América Latina? Num ritmo sustentado, responde o FMI.
A instituição de Washington prevê que eles estarão na origem de 75% do crescimento da demanda nos próximos cinco anos. Nos últimos dois anos, a demanda progrediu duas vezes mais rapidamente do que no decorrer da década precedente.
Não há nada mais natural, analisava recentemente Chip Goodyear, o presidente da gigante mineradora anglo-australiana BHP Billiton, uma vez que "há bilhões de pessoas no mundo que aspiram a possuir uma coisa com a qual nós estamos acostumados, o carro".
A perspectiva do advento de centenas de milhões de motoristas chineses e indianos suplementares mudou toda a regra do jogo, o que remete à segunda incógnita da equação petroleira: as reservas. E ao seu corolário, o famoso "peak oil" (pico do petróleo), além do qual a extração do ouro negro entrará em declínio.
"Nos últimos vinte anos, os volumes que são descobertos são inferiores aos que são consumidos", constata o Instituto francês do petróleo. Por mais que as companhias descubram de 12 a 15 bilhões de barris todo ano, segundo cálculos do Cera, um centro de estudos americano de referência sobre a energia, o planeta consome 30 bilhões de barris.
E não existe provavelmente nenhum novo eldorado, essa "outra Arábia Saudita" mítica que todos esperavam encontrar alguns anos atrás depois das promissoras descobertas no Cazaquistão.
Em 1956, Marion King Hubbert, um geólogo da Shell, havia desafiado a proibição da sua companhia para anunciar que o pico da produção americana seria alcançado em 1970. A história não o desmentiu. E agora, o espírito deste "desordeiro" volta a assombrar o mundo do petróleo, no qual a guerra das estimativas está no auge, opondo geólogos independentes, Estados produtores e especialistas das companhias.
Isso porque, se o ritmo do consumo atual se mantiver, o pico será alcançado mais rapidamente do que o previsto pelos mais otimistas, que já fixaram o prazo do ano de 2030. O presidente de uma grande companhia petroleira não se furta a confessar, longe dos microfones, que sem descobertas consideráveis, o início do declínio da extração poderá ocorrer muito antes da data de 2025, que os seus especialistas haviam fixado inicialmente.
Será mesmo que as estepes da Ásia central, os desertos do Oriente Médio, as zonas equatoriais e os oceanos profundos contêm 1 trilhão de barris, conforme costumam admitir os especialistas, 3 trilhões e até mesmo 4 trilhões, segundo afirmam os mais otimistas?
Uma vez que a transparência não é a virtude cardeal do universo petroleiro, todos esses números precisam ser considerados com cautela.
Mas a euforia dos anos 60 arrefeceu mesmo, de uma vez por todas. E o escândalo da estimativa exagerada das reservas pela Shell em 2004, ou ainda as dúvidas do financeiro americano Matthew Simmons em relação aos 270 bilhões de barris que possuiriam os sauditas abalaram a confiança no futuro radiante do petróleo.
"Nós já ingressamos na era do pós-petróleo", garantiu Dominique de Villepin, nesta quinta-feira (1/9), ao apresentar seu plano de retomada do crescimento. Os gigantes do petróleo anteciparam o declínio, tentando apagar sua imagem de poluidores e investindo sempre mais na exploração de outros combustíveis fôsseis (gás) ou ainda nas energias renováveis (combustíveis biológicos, eólico, solar).
Poucos sabem que, sem a oposição dos seus acionistas, a BP não seria mais o acrônimo de British Petroleum e sim de Beyond Petroleum ("além do petróleo"). O mundo de Mad Max, no qual bandos se matam entre eles para conseguir as derradeiras gotas de ouro negro, ainda deve demorar a tornar-se realidade, mas o do "coronel" Drake já é uma história muito antiga.
Tradução: Jean-Yves de Neufville UOL Busca - Veja o que já foi publicado com a(s) palavra(s) | |