O excesso é um verdadeiro problema. Existe o risco de que até mesmo a pessoa mais decente do mundo possa ficar entorpecida diante dos relatos infindáveis de atrocidades ocorridas por todo o mundo. Estupros em massa. Assassinatos em massa. Tortura. Opressão institucionalizada das mulheres.
Existem outras coisas no mundo: um esporte, a formatura da sua filha, o balé. A tendência a levantar uma impenetrável cortina psíquica contra o pior que o mundo tem a oferecer é compreensível. Porém, é uma tendência, como alertou Elie Wiesel, que deve ser combatida.
Temos a obrigação de ouvir, por exemplo, quando uma mulher de uma cultura alheia à nossa relembra o momento quando o tempo parou para ela, quando ela estava no meio de um grupo de mulheres atacadas por soldados:
"Eles nos disseram: 'Se você tem um bebê atrás de você, deixe-nos ver'. Os soldados olharam os bebês e, se era um menino, eles o matavam ali mesmo (com tiros). Se fosse uma menina, eles a jogavam no chão. Se a menina morresse, estava morta. Se não morresse, as mães tinham a permissão de pegá-la e ficar com ela".
A mulher lembrou que, naquele momento, o tipo de momento palpitante quando o tempo não só para, como se perde, quando para de ter significado, uma avó levava um menino nas costas. A avó se recusou a mostrar a criança aos soldados, então ela e o menino foram baleados.
Uma equipe de pesquisadoras, três delas médicas, viajou para o Chade, no último outono, para entrevistar mulheres refugiadas do pesadelo em Darfur. Quando me contaram sobre o relatório que o grupo havia compilado para o Médicos pelos Direitos Humanos, meu primeiro pensamento foi: "Ainda há algo para ser dito?"
Então, pensei em Wiesel, que, de forma eloquente, nos alertou sobre os perigos inerentes à indiferença em relação ao sofrimento dos outros. Histórias de atrocidades na escala daquelas cometidas em Darfur nunca se esgotam.
O conflito continua há mais de seis anos. Apesar dos assassinatos e estupros em massa terem diminuído, essa enorme catástrofe humana ainda está conosco. Em primeiro lugar, o Sudão expulsou grupos de ajuda humanitária de Darfur, uma atitude considerada por Susan Rice, embaixadora dos Estados Unidos para a ONU, como "responsável por genocídios de outras formas".
Centenas de milhares de pessoas foram mortas no conflito e a agressão sexual sistemática às mulheres de Darfur tem sido amplamente relatada. Milhões de pessoas foram desabrigadas e talvez 250 mil estejam vivendo em condições piores que a subsistência em campos de refugiados ao longo da fronteira do Chade com o Sudão.
O relatório, elaborado pelo Médicos para os Direitos Humanos, foca em várias dezenas de mulheres do campo de refugiados Farchana, no Chade. O documento presta atenção especial à humanidade das mulheres.
"Essas são pessoas reais, com filhos, com vidas que podem ter sido simples, mas que eram realmente ricas antes que elas fossem desalojadas", disse Susannah Sirkin, vice-diretora do Médicos pelos Direitos Humanos.
As condições nos campos de refugiados são cruéis e pioradas pelos traumas que ainda atormentam as mulheres, muitas delas testemunhas - ou vítimas - da mais extrema violência.
"Acho que não estava preparada para o nível de sofrimento palpável que elas continuam a suportar", disse Dra. Sondra Crosby, uma das quatro entrevistadoras. "As mulheres me contaram que estão passando fome. Elas comem sorgo, óleo, sal e açúcar".
Crosby e suas colegas levaram algumas bolachas e biscoitos para as mulheres, durante as entrevistas. "Acho que não vi nenhuma mulher comer as bolachas, apesar de estarem famintas", disse ela. "Todas escondiam a bolacha no vestido, para mais tarde dar aos filhos".
As mulheres também vivem com o medo constante da violência sexual. Segundo o relatório, o estupro é um problema impregnado nos campos de refugiados, com as mulheres especialmente vulneráveis quando buscam por madeira para o fogo ou comida.
"É tão mais fácil desviar o olhar das vítimas", disse Wiesel, em discurso na Casa Branca, em 1999. "É tão mais fácil evitar essas brutas interrupções ao nosso trabalho, nossos sonhos, nossas esperanças".
No entanto, a indiferença ao sofrimento dos outros "é o que faz o ser humano virar desumano", disse ele, acrescentando: "O prisioneiro político em sua cela, a criança com fome, os refugiados sem-teto - não responder ao apelo deles, não aliviar um pouco da solidão ao oferecer um raio de esperança significa exilá-los da memória humana. Ao negar a humanidade deles, abandonamos a nossa própria humanidade".
Tradução: The New York Times