Senhor Eduardo Bolsonaro, Li, pasmo, sua assinatura e a de seu irmão Flávio ao final de 40 páginas de denúncias de violações de direitos humanos supostamente infligidas aos golpistas presos pelos ataques realizados contra nossa democracia em 8 de janeiro. O documento era a petição enviada por senadores e deputados bolsonaristas ao Comitê de Direitos Humanos da ONU, apelando para que o órgão saísse em defesa das mais de 1.500 pessoas detidas por participar da tentativa de golpe. O que mais me surpreendeu não foi apenas a fragilidade da acusação, mas a incoerência entre o que o senhor diz a seus aliados e eleitores sobre a entidade e esse gesto de recorrer justamente ao Comitê de Direitos Humanos da ONU. Pasmo também fiquei ao me dar conta que, agora, cabe à entidade "globalista" ser a esperança de proteção aos golpistas que desprezavam o sistema multilateral. Quantas voltas dá a terra plana, não é mesmo? Ainda antes de seu movimento de extrema direita vencer as eleições em 2018, esse mesmo comitê emitiu uma decisão na qual pedia que o Brasil tomasse "as medidas necessárias para garantir que Lula possa exercer seus direitos políticos enquanto estiver na prisão, como candidato às eleições". O comitê citou o "acesso à mídia e a membros de seu partido político" e pedia que o Brasil "não impeça que ele dispute as eleições presidenciais de 2018 antes de decididos todos os recursos judiciais" pendentes. Naquele momento, sua reação foi a de desprezar a minimizar a decisão. "A ONU não disse que Lula tem que participar das eleições. Foi um grupo de peritos de um comitê da ONU", escreveu o senhor. Teu pai, candidato naquele momento, afirmou também que: Há mais ou menos dois meses, falei em entrevista que já teria tirado o Brasil do conselho [de Direitos Humanos] da ONU […]. Este atual apoio a um corrupto condenado e preso é só mais um exemplo da nossa posição Neste caso, há um equívoco sério. Quem tomou a decisão foi o Comitê de Direitos Humanos da ONU, que existe para monitorar o cumprimento dos governos em relação ao Pacto de Direitos Civis. E não o Conselho de Direitos Humanos, este sim composto por governos, entre eles o Brasil. Meses depois, já no poder, o senhor fez um gesto de arma, diante de uma escultura que é um dos símbolos da busca da comunidade internacional pelo desarmamento e pela paz. A peça fica na entrada da ONU e mostra uma arma com um nó em seu cano. Em 2021, o senhor atacou a decisão na ONU de criar uma comissão para investigar violações de direitos humanos cometidas por Israel. O senhor escreveu: "É como se bandidos condenassem uma operação da polícia". Quem eram os bandidos para o senhor? Mas, obviamente, todos nós podemos mudar e evoluir, e sua decisão de recorrer à ONU mostra que esse caminho existe para todos. Curiosamente, o órgão ao qual o senhor recorre agora para proteger seus aliados acabou de emitir recomendações ao Estado brasileiro sobre temas que sei que são muito caros para sua família. Por exemplo, o Comitê de Direitos Humanos da ONU pede que o Brasil: 1. Investigue omissão na pandemiaEm um documento publicado em julho, o órgão critica as altas taxas de mortalidade pela covid-19 no Brasil e pede que todas as violações relacionadas ao tratamento da pandemia sejam "prontamente e adequadamente investigadas, que os responsáveis sejam processados e, se condenados, punidos com sanções apropriadas". O órgão ainda pede que as vítimas tenham acesso à reparação. 2. Criminalize o discurso de ódioO comitê lançou um alerta sobre "os níveis crescentes de discurso de ódio, especialmente online, com base em raça, etnia, gênero, orientação sexual e status indígena, até mesmo por autoridades de alto nível". Entre as recomendações, o mesmo comitê ao qual o senhor recorreu pede para o Brasil "criminalizar explicitamente os atos de discurso de ódio". 3. Coloque fim à Lei da Anistia e investigue torturadores do regime militarUm dos aspectos destacados pela ONU é o combate à impunidade e às violações dos direitos humanos no passado. De acordo com o texto, o "comitê observa com preocupação a falta de implementação das recomendações do relatório da Comissão Nacional da Verdade, incluindo a reparação adequada às vítimas e a responsabilização dos perpetradores". O comitê lamenta a ausência de investigação adequada sobre as violações de direitos, inclusive os direitos dos povos indígenas durante a ditadura, incluindo o deslocamento forçado de suas terras tradicionais. O comitê também está preocupado com a falta de compatibilidade da Lei de Anistia de 1979 com as disposições do Pacto Entre as recomendações, o órgão pede ao Brasil considerar rever a lei de 1979. Também sugere investigar as alegações de abusos de direitos humanos cometidos entre 1946 e 1988, inclusive contra povos indígenas e outras minorias; processar os perpetradores e, se forem condenados, impor penalidades apropriadas e garantir o acesso das vítimas a recursos eficazes; 4. Proteja a democracia e solucione o caso Marielle FrancoO comitê de fato está preocupado com a democracia no Brasil. Mas quer que o estado lide com os relatos de violência, assédio, intimidação e ameaças dirigidas a políticos e candidatos políticos durante as campanhas eleitorais, particularmente mulheres, afrodescendentes, povos indígenas e pessoas LGBTQIA+, assim como sua baixa taxa de representação. Ele ainda pede explicitamente que o caso de Marielle Franco seja elucidado. "O comitê lamenta a falta de responsabilização e impunidade pela violência contra políticos, incluindo o assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes", disse. 5. Mude as leis sobre o abortoO comitê afirma estar "preocupado com os relatos de que as mulheres ou meninas grávidas que têm o direito legal ao aborto nem sempre podem usufruir de seu direito na prática, devido ao medo de serem processadas, à negação de acesso a hospitais e a um ambiente hostil, inclusive em áreas rurais". Por isso, pede que o Brasil "altere a legislação para garantir o acesso seguro, legal e efetivo ao aborto, inclusive em áreas rurais e remotas, onde a vida e a saúde da mulher ou menina grávida estão em risco, ou onde levar uma gravidez a termo causaria à mulher ou menina grávida dor ou sofrimento substancial, mais notadamente quando a gravidez é resultado de estupro ou incesto ou quando a gravidez não é viável". O órgão ainda pede que o Brasil revogue as leis que impõem punição criminal às mulheres e meninas que se submetem a abortos legais e aos médicos que as assistem. 6. Investigue e puna a violência policialOutro ponto que o senhor vai gostar de saber é a denúncia do mesmo comitê contra a violência policial no Brasil, afetando desproporcionalmente jovens afro-brasileiros e pessoas LGBTQIA+. Diante disso, a entidade pediu que o estado brasileiro "assegure que todos os funcionários responsáveis pela aplicação da lei recebam sistematicamente treinamento sobre o uso da força", com base nos princípios de legalidade, necessidade e proporcionalidade. O comitê está preocupado também com a falta de responsabilização pelo uso excessivo da força e execuções extrajudiciais por agentes da lei e, em particular, com a ausência de investigações, processos e condenações eficazes, oportunas e independentes dos responsáveis, bem como com a falta de reparações apropriadas para as vítimas. O que pede a ONU? Que o Brasil investigue prontamente, de forma independente, imparcial e completa todas as alegações de uso excessivo da força e execuções extrajudiciais, e que garanta que todos os perpetradores sejam processados e, se considerados culpados, punidos, inclusive em relação à invasão do Complexo da Maré e às operações policiais no Jacarezinho e na Vila Cruzeiro. Enfim, sei que esses temas mobilizam tua agenda e de sua família. E, claro, ao recorrer ao comitê, imagino que o senhor esteja chancelando a legitimidade do órgão. Fico feliz e tenho certeza que as vítimas de todos esses abusos também respiram aliviados com esse novo posicionamento do bolsonarismo. Afinal, isso significa que seu movimento está disposto a também cumprir com as demais recomendações do comitê. Elas são fundamentais para humanizar o Brasil. Ou não? Saudações democráticas Jamil PUBLICIDADE | | |