Prezados cartolas, O mundo inteiro viu, ao vivo e perplexo, o beijo que o presidente da Real Federação Espanhola de Futebol, Luis Rubiales, considerou que poderia dar em uma das jogadoras campeãs do mundo, no momento mais importante da vida profissional daquela atleta. Mas a perplexidade só tem aumentado, diante de sua incapacidade de reconhecer o que aquilo significou uma violência. Enquanto alguns de seus aliados aplaudem a suposta coragem em desafiar o que ele chamou de "falso feminismo", o que eclode é a cegueira de um grupo de homens que, no poder de seus cargos, de sua casa ou de sua estrutura física, insistem em perpetuar um mundo obsceno. Escrevo esta carta para pedir que um gesto como esse não fique impune. Basta! Ignorá-lo será chancelar a violência. Num esporte marcado pelo machismo, não basta apenas falar em igualdade de gênero ou no respeito pelas mulheres em cartazes espalhados pelos estádios. É necessário se juntar à revolução, servir de exemplo, punir crimes e garantir que mulheres tenham pelo menos a mesma quantidade de assentos na mesa do poder que os homens. Temos de reconhecer: o que existe é uma crise humanitária que exige uma ação emergencial. O beijo forçado é apenas a ponta de um iceberg de uma realidade repleta de sangue, medo e morte. Todos os dias. Pergunte a elas. Nada disso é novo e, todos nós, sabemos o que aquela cena representou. Ainda no século passado, eu e alguns de meus amigos fomos convidados para a casa de uma eminente personalidade de nossa profissão. Progressista, intelectual renomado e divertido, ele era nossa referência. Várias e várias décadas mais velho que todos nós, ele acolhia aqueles jovens em sua casa de maneira honesta e generosa. A noite havia sido tudo o que imaginávamos. Ele contava suas histórias, enquanto preenchia nossos copos de esperança e vinho. Até que, no final daquela festa, ao se despedir de nós, o anfitrião decidiu que tinha o direito de forçar um beijo em uma de nossas companheiras. A mais inteligente e a mais convicta de seus direitos e da luta feminista. E, sim, a mais bonita. Após o beijo, ela entrou no carro e disse ao garoto que estava dirigindo: "Por favor, vamos sair daqui imediatamente". Inconformado por aquela situação, o menino que era de fato seu namorado ficou sem reação. E ela, num triste gesto típico de uma vítima de uma violência sexual, repetia apenas uma palavra no carro: "Desculpe, desculpe, desculpe". Aquele menino que dirigia o carro era eu. Aquele menino que era seu namorado era eu. Quando entendi o que havia ocorrido e enquanto íamos para casa, eu pensava: por qual motivo ela não o empurrou? Não cuspiu em sua cara ou soltou um grito que chamaria a atenção da esposa do eminente profissional? Ainda hoje sinto vergonha profunda por minha cegueira. Vergonha por não entender que aquela menina não teve opção. Por não ter visto que qualquer que fosse sua reação naquele momento poderia significar para ela um prejuízo real, um constrangimento ou simplesmente a acusação de que ela não entendera que era apenas "uma brincadeira". Fruto de uma sociedade machista, eu levei um tempo para deixar de enxergar que ali estava uma relação desigual de poder. Com minha incompreensão, eu contribuía para acumular novas camadas de culpa sobre a vítima. O gesto do cartola espanhol me fez relembrar todo aquele episódio. Mas, acima de tudo, entender que, décadas depois, a maioria de nós homens continua cego. Por opção. Com ou sem um beijo, o assédio é a realidade das mulheres, desde sua infância. Determina como vão, onde vão, quem são, como trabalharão. Falso, senhores cartolas, é não entender que as questões de gênero são sobretudo questão de poder. Um poder que os senhores exercem como presidentes das instituições que comandam aquelas meninas. A declaração incisiva de Rubiales em cinco ocasiões num discurso nos últimos dias de que não iria se demitir ecoa de forma dissonante na construção de um novo mundo. Um mundo que não tolerará tal comportamento. Um mundo que precisa ver o assédio como ele de fato é: um crime. Hoje, portanto, vocês têm a oportunidade de mostrar que existem homens que podem e querem se unir à revolução que as mulheres lideram há anos. Mas a história não será gentil com vocês caso o caminho escolhido seja o do silêncio. Saudações democráticas, Jamil Chade PUBLICIDADE | | |