Queridas crianças de Gaza,
Seus corpos são, hoje, reflexos de um fracasso internacional. Os olhos de pavor, os rostos empoeirados e trêmulos são espelhos da desfiguração de referências de um mundo hipócrita. São vocês quem nos escancaram a verdade. A régua que nos mede. Relatos vindos de Gaza apontam como amputações estão sendo feitas sem anestesias, enquanto suas pernas, ainda pequenas, são guardadas em caixas de sapatos. Os gritos ecoam por salões esvaziados da diplomacia internacional, incapaz — ou desinteressada — de lhes socorrer. Vocês foram abandonados. Nem mesmo a aprovação de uma resolução no Conselho de Segurança da ONU é capaz de frear a violência. Quando alguns líderes se mostram abalados diante da morte de uma criança em Gaza a cada dez minutos, optam por uma indignação seletiva. Esquecem, de forma conveniente, que vocês já nasceram distópicos. Nasceram sem um país, presos num território que é o corpo da disputa pelo poder. Chegaram ao mundo asfixiados por uma história da qual jamais participaram. São os órfãos da promessa de paz e herdeiros do legado do colonialismo. Apesar de serem nossos emissários a uma era na qual não veremos, nasceram sem futuro. E, nos ombros, carregam um passado violentado. Onde estavam os líderes quando as fronteiras foram fechadas há quase duas décadas e vocês passaram a ser proibidos de caminhar em direção ao horizonte? Onde estavam as potências quando era evidente o fracasso das instituições internacionais, responsáveis por sua proteção? Onde estavam elas enquanto o extremismo ganhava raizes? Onde estavam os arautos do mundo livre enquanto as sombras dos muros encobriam sonhos? A construção de um cemitério para crianças não é apenas o resultado de danos colaterais de um conflito armado. É parte de uma estratégia para quebrar a moral e o espírito de uma resistência. Entre as crianças que sobreviveram, o pesadelo não termina quando abrem os olhos depois da explosão de mais um míssil. Esta guerra inaugurou uma nova classificação de vítimas: as Crianças Feridas Sem Família Sobrevivente, ou CFSFS. Uma sigla que poderia ser traduzida pela palavra crueldade. Na verdade, dessas crianças lhes foi arrancado o verdadeiro sentido de lar. Hoje, ao redor de vocês está ocorrendo o maior êxodo de palestinos desde 1948. E tudo isso diante de nossos olhos. Um rio de seres humanos desumanizados pela guerra. Caminham para onde? Eu me pergunto: que sociedade irá emergir depois de tanto sangue? Como explicar a um órfão que a revanche não lhe serve? Como garantir canais de diálogo entre vocês e aqueles que também foram brutalizados do lado israelense por atos terroristas do Hamas? Ao redor do mundo, milhões de menores vivem em locais impactados por conflitos armados ou terrorismo. Em algumas regiões, um conflito percorre toda a infância de uma geração. Na Libéria, a guerra civil entre 1989 e 2004 causou um trauma generalizado. Em Ruanda, há quase 20 anos, vi como perambulavam sem destino pelas ruas milhares de órfãos de pais que morreram no genocídio. Outros sobreviventes foram levados como escravos domésticos, com a população Hutu que fugiu do país para territórios vizinhos. Nesta semana, passei por um parque diante da ONU onde dois memoriais foram erguidos para marcar as vítimas dos genocídios de Ruanda e da Bósnia. O espaço para vocês parece já estar reservado. Quantos outros memoriais os cúmplices desses crimes vão cinicamente erguer em homenagens à irmãs e irmãos de vocês? Em minha mente, soa apenas a oração que León Gieco nos ensinou: "só peço a Deus que a guerra não me seja indiferente". Em Gaza, em 2023, é também a nossa própria humanidade que é soterrada nos escombros, a cada morte de uma criança. A utopia da paz enterrada em valas comuns. Nos epitáfios desses inocentes, a constatação do fracasso da Justiça internacional.
Jamil Chade PUBLICIDADE | | |