Sr. presidente, No próximo dia 31, serão completados 60 anos do golpe militar que jogou o país numa longa noite escura. Os documentos não deixam mais dúvidas sobre os crimes cometidos, os abusos e os sonhos enterrados. Recentemente, porém, o senhor disse que não queria mexer com o passado e, agora, determinou um silêncio do governo durante a data. Confesso que fiquei perplexo com sua decisão. Sei que existem as considerações de governabilidade, de diálogo e de pacificação. Sei que o senhor herdou uma democracia que estava sendo desmontada. Também sei de sua preocupação e prioridade em dar respostas aos envolvidos nos ataques de 8 de janeiro de 2023. Mas a história mostra que sempre que se tenta colocar uma pedra sobre um crime, seus monstros voltam. Sempre. Basta olhar para as revelações contidas nos depoimentos publicados na última sexta-feira para ver que que existia um plano e uma intenção muito concreta de um grupo no poder de decretar um estado de sítio. Falar de 1964, porém, não significa tirar o foco de 8 de janeiro. Muito pelo contrário. Teriam os atuais golpistas tido a audácia de planejar uma ruptura democrática se a geração dos militares de 1964 tivesse sido devidamente julgada pelos crimes que cometeram? Teriam eles ido tão longe se houvesse, na opinião pública, um sólido entendimento sobre o que significa uma ditadura? Marcar os 60 anos de uma ruptura democrática, portanto, não se trata de falar do passado. Mas lidar com nosso presente e construir o futuro. É parte de um processo de educação e de insurreição das consciências. Exemplos em diferentes continentes, religiões e culturas demonstram que aqueles que optaram por confrontar a história e seus crimes construíram bases de uma sociedade democrática. Na Alemanha, a desnazificação ocorre todos os dias. Até hoje. Lidar com esse passado teria ainda um impacto que iria muito além do espaço dos militares na sociedade brasileira. A defesa da democracia fortaleceria pautas como o combate ao racismo, a luta pelo direito das minorias ou pela defesa da posição das mulheres na condução do país. Todos eles exigem um compromisso que foge muitas vezes da lógica partidária e da barganha política. Fingir que a data do 31 de março não existe simplesmente não condiz com a realidade. De fato, o 31 de março de 1964 existe em cada vidraça rompida nos prédios em Brasília no dia 8 de janeiro de 2023. Fingir que a data do 31 de março não existe mandará uma mensagem equivocada. Será um silêncio ensurdecedor que ecoará como uma traição para as vítimas e suas famílias. Mas também para muitos democratas que foram às urnas eleger teu governo justamente contra o risco de que novos ditadores chegassem ao poder. Os 60 anos do golpe poderiam ser respondidos com democracia. Muita democracia. Seria, por exemplo, uma data ideal para anunciar o restabelecimento da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, para criar um grupo interministerial para finalmente implementar as recomendações da Comissão da Verdade. Ou então para retirar de pontes, ruas e estradas os nomes de ditadores, para marchar ao lado das vítimas pela praça dos Três Poderes. Corremos sérios riscos quando a luta é substituída pelo silêncio, em nome de uma suposta estabilidade. Basta ler os depoimentos das investigações sobre o 8 de janeiro e sobre a tentativa de um golpe para entender que, quando não confrontados, os monstros do passado sempre voltam. Sempre. Saudações democráticas, Jamil Chade PUBLICIDADE | | |