"Entrei na aviação nos anos 90. O treinamento era rigorosíssimo: nós éramos pesados toda segunda-feira. Quem estivesse fora do peso tinha de emagrecer. Agora não pode mais fazer isso, é discriminação. A parte mais complicada do treinamento é a emergência. Porque, na realidade, os comissários estão lá pra isso. Não é pra dar comida e paparicar o passageiro. No nosso encontro anual, temos a revisão de todos os acidentes e pousos de emergência que aconteceram. Se houve fatalidade, a gente tem de assistir os depoimentos dos comissários do voo, mas tudo isso é secretíssimo, do mesmo jeito que são os treinamentos com especialistas em segurança, que falam de incidentes de terrorismo e os procedimentos que a gente tem de ter. Recebemos apostilas no curso e no final temos de destrui-las, para não vazarem. Meu medo sempre foi das situações médicas, mais do que de aterrissagem forçada, que envolve toda a tripulação e quase sempre dá em nada — 80% das preparações para aterrissagem forçada acabam em aterrissagem normal. Mas atendimento médico sempre me apavorou um pouco, porque eu não sou médico, tenho medo de não conseguir fazer o procedimento correto, de saber se é pressão baixa, pressão alta. Sei lá, não me lembro direito se tem de dar sal pra um, água pra outro, entro um pouco em pânico. Recentemente, o meu maior medo se realizou. Tivemos uma morte a bordo. O passageiro estava com a mulher e o filho e não acordou para o café da manhã. O filho entrou em pânico. Nessas horas, o chefe da cabine tem de ver se tem médicos a bordo. Nós temos uma mensagem pré-gravada para esse tipo de evento, para não deixar que a voz do comissário traia o seu nervosismo. Eu acionei o chamado, mas ninguém se apresentou. Então, eu tive de pegar o microfone e falar direto. Aí duas pessoas se apresentaram. Médicos sempre esperam outros se apresentarem antes deles. É como no nosso caso: o comissário que atende o problema assume o problema. No avião, nós temos o kit medicação, que só os médicos podem abrir. Mas nem sempre eles sabem o que fazer com o material. Estão fora do ambiente do hospital, às vezes não estão preparados para atender emergências. Um dos médicos começou a picar o senhor com a seringa, o outro ficou lendo as bulas, e nós, comissários, ficamos no desfibrilador, só que ele não dava mais choque. Estava claro que o senhor já tinha morrido. Mas, num avião, só um médico ou um padre podem declarar alguém morto. Quando você tem uma morte a bordo, uma aterrissagem forçada ou qualquer outra situação traumática, a tripulação suspende a rotina. A empresa considera que ela não está mais sã e manda de volta para casa. Ninguém trabalha até fazer a reunião com psicólogo, supervisor, gerente da base. Mesmo quem não viu nada é afetado de alguma forma. Nessas reuniões, todo mundo fala o que sentiu. A pessoa começa a contar e todo mundo desaba a chorar. No caso do passageiro que morreu, para mim, o que mais me afetou foi a sensação de não ter podido fazer nada. Se é um problema de refeição que não veio, se um passageiro vai perder a conexão, tudo isso a gente resolve ou minimiza, mas quando chega naquele ponto, um coração que para a 31 mil pés de altura... Meu Deus, eu me senti um nada. |