Topo

Em nome da harmonia política, país oculta crimes da ditadura

Ivo Herzog

Especial para o UOL

26/03/2014 06h00

Nesta semana estamos vendo inúmeros artigos relembrando o golpe de 1964. Um momento triste na nossa história, quando a liberdade e a democracia foram abafadas pela violência física de um regime ilegítimo. Conhecer esta história é fundamental para entendermos onde estamos hoje. As questões sociais e políticas do Brasil.

É importante compreender o que foi feito nesses 50 anos e que se traduz na sociedade que temos. Problemas sociais extremamente graves nas áreas de educação, saúde, moradia, segurança e outros.

Justiça

A abominação de enfrentar feridas pode ser traduzida em impunidade: crimes cometidos foram colocados sob o tapete em nome da 'harmonia política'

O Brasil tem um histórico de busca pela reconciliação. O fim da ditadura é um exemplo disso. Não houve uma ruptura política ou institucional. Tudo foi negociado politicamente. A tal transição lenta e gradual. Mais uma vez decidiu-se nos palácios colocar uma pá de cal sobre o nosso passado, esquecendo-o e, portanto, esquecendo os protagonistas daquele passado.

Digo mais uma vez porque este processo não é novo. Acontece desde o tempo da escravidão no Brasil. Acontece com os crimes contras povos indígenas.

Esta abominação de se enfrentar as nossas feridas infelizmente pode ser traduzida de uma forma mais simples - em impunidade. Crimes cometidos nos períodos que cito são colocados sob o tapete em nome de uma “harmonia política”. Mas isto nos traz consequências.

O Brasil tem um histórico de décadas de desigualdade social (melhorada nos últimos governos) e exclusão social. Nunca enfrentamos de frente os preconceitos herdados de uma cultura escravagista. Movimentos tímidos, como “cotas raciais” nas universidades, tentam vedar com band-aid a ferida de uma amputação. Não conseguimos admitir nossas fraquezas e dessa maneira enfrentá-las de frente.

Da mesma maneira não queremos falar sobre o nosso passado recente de terror de Estado, quando pessoas eram sequestradas, torturadas e assassinadas por agentes do Estado. Esta não é uma história agradável de contar para os nossos filhos. Mas precisa ser contada. E tem que ser investigada e divulgada.

Anistia

Uma lei que 'perdoa' os agentes do Estado e foi apropriada pelo governo para varrer para debaixo do tapete os crimes daquele período terrível que passamos

Países como a Alemanha têm museus que mostram o horror do Holocausto. Expõem os crimes cometidos pelos ancestrais da população atual como forma de educação e preservação da memória, para que tais fatos não se repitam.

Porém, o Brasil tem a tradição de buscar o caminho do esquecimento. Não ensinar aos nossos filhos quem foram na verdade o marechal Rondon, o general Ernesto Geisel, os Bandeirantes e outros” heróis” que entraram na história por dizimar povos indígenas e por liderar governos que torturaram e assassinaram seus cidadãos.

A mais evidente herança deste processo, particularmente no período em que vivemos, é a mais violenta polícia do mundo. Poder de Estado sempre presente na nossa história e atualmente protagonista de centenas de assassinatos e torturas, tanto nas grandes cidades como no campo. “Onde está Amarildo?” foi o mais célebre desses acontecimentos.As notícias de grupos de extermínio são quase diárias na imprensa. Massacres. Assassinatos. Tortura protagonizada por aqueles que deveriam nos defender.

Mais uma vez a sociedade prefere não enfrentar de frente este problema. Esconde-se atrás de altos muros, condomínios e segurança particular. A segurança que deveria ser pública.

Anistia

Um dos capítulos de fechamento do período da ditadura implantada com o golpe de 1964 foi a lei da anistia. Batalha travada por aqueles que tinham entes queridos nas prisões e no exílio. E que foi apropriada pelo governo para, mais uma vez, varrer para debaixo do tapete os crimes daquele período terrível que passamos. Uma lei que “perdoa” os agentes do Estado.

É fundamental saber que em nenhum outro lugar no mundo existiu uma lei de anistia que beneficiasse os agentes do Estado. Violências como as que foram cometidas no Brasil são tema de cortes internacionais que as condenam como crimes contra a humanidade a tortura, desaparecimento forçado e assassinato de civis.

Anos de chumbo

Decidiu-se nos palácios colocar uma pá de cal sobre o nosso passado, esquecendo-o e, portanto, esquecendo os protagonistas

Nossa polícia é fruto desta tradição brasileira que venera o esquecimento e chama memória de revanchismo.

O primeiro passo dado em direção contrária foi a criação da Comissão Nacional da Verdade. Um pequeno passo na direção da justiça e na tentativa de fazer cessar fatos como os que povoam a nossa história e o nosso presente. Fim da violência do Estado.

Porém, o passo fundamental ainda precisa ser dado e tem que ser agora: a revisão do parecer do Supremo Tribunal Federal, no entendimento da aplicação da lei da anistia. Para iniciar um processo de justiça e reconciliação precisamos punir aqueles que abusaram do seu poder durante a ditadura .

O fim da violência tão presente nas nossas vidas depende do enfrentamento direto das nossas mazelas, para poder cicatrizar nossas feridas. Sem acovardamento. Este país só irá mudar se tivermos coragem para tal. Esta é a única maneira de deixar uma herança melhor para nossos filhos.

  • O texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL
  • Para enviar seu artigo, escreva para uolopiniao@uol.com.br