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Só assembleia constituinte pode destravar reforma política

Wadih Damous

Especial para o UOL

30/03/2014 06h00

O Direito é um construto humano. Não nasce em árvore. Não advém da natureza.

A concepção hoje dominante na teoria do direito, chamada pós-positivista ou neoconstitucionalista, não se compatibiliza com a ideia de dogmas jurídicos inafastáveis. Toda concepção lógico-jurídica é construída a partir de momentos políticos, culturais e históricos, e não podem ser consideradas como dogmas intocáveis.

Isso porque, ao contrário do que muitas vezes é afirmado, na nossa visão, o pós-positivismo não representa uma ruptura total com o positivismo jurídico, mas sim o aporte teórico da teoria dos direitos fundamentais e da normatividade dos princípios, aliado a uma rejeição parcial de algumas características do positivismo, sobretudo a prevalência absoluta da teoria das fontes sociais do direito.

Obstáculo

O maior entrave à realização da reforma política é a falta de interesses dos atuais ocupantes de cargos parlamentares

Esta breve introdução tem como objetivo afastar o pré-conceito, que insiste em grassar na comunidade jurídica, no sentido de que ideias não consagradas pela doutrina, atual ou não, representam pura e simples ignorância jurídica.

No que toca à desejada reforma política (incluindo nesse conceito a reforma eleitoral), parece ser consenso que o maior entrave à sua realização, ou mesmo a um debate sério e amplo que a anteceda, é a falta de interesses dos atuais ocupantes de cargos parlamentares.

Como esperar daqueles que tiram proveito das mazelas do sistema atual vontade política de mudar esse mesmo sistema, em detrimento próprio? O longo tempo pelo qual se adia a discussão no Congresso Nacional indica que a resposta pode ser “nunca”.

Assembleia constituinte

A solução para esse obstáculo específico, já cogitada há algum tempo, é que a reforma seja efetivada por outro órgão que não o parlamento atual. Mas como fazê-lo, se a reforma política necessitaria de modificação parcial da Constituição Federal, o que é competência do poder constituinte derivado, ou seja, do Congresso eleito?

Benefícios

Como esperar daqueles que tiram proveito das mazelas do sistema atual vontade política de mudar esse mesmo sistema, em detrimento próprio?

A resposta é a formação de uma assembleia constituinte parcial ou exclusiva, composta por pessoas eleitas especificamente para tal fim, excluídos os atuais parlamentares e composto por pessoas que se submeterão, posteriormente, a uma extensa quarentena referente a cargos do Poder Legislativo Federal.

Essa proposta já foi objeto de três PECs (Propostas de Emenda Constitucional). Duas delas já foram arquivadas, e a terceira, apresentada no recente ano de 2013, ainda tramita na Câmara dos Deputados, sob o nº 276/2013.

Essa terceira PEC foi oferecida após a ideia de uma reforma política a ser realizada por assembleia constituinte parcial ser reapresentada pela presidente Dilma, no âmbito de um pacote de respostas às manifestações ocorridas em todo o país nos meses de junho e julho de 2013.

Destravar a reforma

A solução é a formação de uma assembleia constituinte composta por pessoas eleitas especificamente para tal fim, excluídos os atuais parlamentares

Muito embora, aparentemente, a maioria das pessoas tenha compreendido que essa poderia ser a única forma de se empreender uma reforma política, parece que as fileiras contrárias à sua realização se engrossaram mais do que aquelas favoráveis.

Tanto é que o governo federal foi obrigado a recuar, mudando o discurso para apontar para uma reforma política feita pelo próprio Congresso, por meio da tramitação regular de uma PEC.

Resistência

Com efeito, a proposta foi tratada como aberração jurídica, fruto de puro e simples desconhecimento dos conceitos de institutos de direito constitucional, notadamente os poderes constituintes derivado e originário.

Segundo essa linha de argumento, apenas o poder constituinte derivado, portanto, poderia reformar parcialmente a Constituição, e esse poder só pode ser exercido pelo Poder Legislativo já eleito de acordo com a Constituição vigente, que o autorizou a tanto.

Uma das personalidades do mundo jurídico que mais esbravejou contra a proposta foi o ministro Gilmar Mendes, o qual, em síntese, tachou a proposta de “golpe bolivariano”. Não é bem assim.

Afirmar-se, pura e simplesmente, não ser possível a realização de constituinte parcial porque os livros atuais de direito constitucional não preveem tal hipótese, significa negar ao direito algo que lhe é essencial: sua capacidade de se adaptar a culturas e tempos diversos, servindo como instrumento de evolução social, e não como um dogma que se encerra como fim em si mesmo.

Aliás, as constituições de diversos países admitem expressamente a revisão constitucional por órgão diverso do Congresso ou Parlamento regularmente eleitos. Exemplo patente é o da Constituição dos Estados Unidos da América, que prevê hipótese de convocação de convenção para reformar o texto constitucional.

Críticas

A proposta foi tratada como aberração jurídica, fruto de puro e simples desconhecimento dos conceitos de institutos de direito constitucional

Além disso, o próprio Centro de Estudos do Senado Federal publicou artigo de Fernando A. Trindade, o qual, citando a obra de Jorge Miranda (Miranda, Jorge, Manual de Direito Constitucional, Coimbra Editora, 3ª edição, 1996, Tomo II, pp. 153/154), elenca a “revisão por assembleia ad hoc”, listando diversos países que a adotam ou adotaram historicamente.

Sendo assim, a ideia acerca da realização de uma assembleia constituinte exclusiva, com características híbridas (formação semelhante à constituinte originária, porém competência e limites próprios da derivada), deve ser debatida a sério, sem o preconceito e a pecha de se tratar de mero equívoco ou falta de compreensão do direito constitucional, o qual não trabalha, ainda, com essa hipótese.

Como já dito, essa parece ser a única forma de evitar o obstáculo da absoluta falta de vontade política das casas legislativas normalmente eleitas, de cujos representantes, infelizmente, não se pode esperar que mudem um sistema cujas mazelas quase sempre os beneficiam.

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