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Para torcedores organizados, quem pensa ou age diferente deve morrer

Roberto Senise

Especial para o UOL

08/04/2014 06h00

Eu sou contra a violência porque parece fazer bem, mas o bem só é temporário; o mal que faz é que é permanente (Mahatma Gandhi)

Na madrugada de 27 de março de 2014, mais um torcedor foi vítima de violência em São Paulo. Charles Lemos dos Santos, 25, torcedor são-paulino que havia saído do Morumbi após o jogo do seu time com a Penapolense, foi agredido por volta das 3h30, por homens que, trajando camisetas de torcida organizada, desceram de um carro e passaram a espancá-lo com barras de ferro e pedaços de pau.

Cerca de um mês atrás, o torcedor santista Márcio Barreto de Toledo, 34, foi espancado até a morte por torcedores são-paulinos.

Dias atrás, torcedores do Corinthians invadiram o CT Joaquim Grava, causando fundado temor nas pessoas que ali se encontravam, para cobrarem melhor atuação do time de futebol.

No final do ano passado, um importante e revelador documentário foi transmitido pela TV aberta, revelando o triste quadro da existência de pequenas milícias dentro das torcidas organizadas. Nele, foi entrevistado um dos coautores de homicídio ocorrido no embate entre corintianos e palmeirenses, em 2012.

Indagado pela reportagem, ele disse: "Poucas ideias, entendeu? Caiu no chão, é prá matar. O pirata deu altas barradas no cara que morreu, mano. Todo mundo matou, tio. Cada um chegava e dava uma". E, balançando a cabeça afirmativamente, confirmou que bateu na vítima.

Cada vez mais atônita, a sociedade vem sendo informada sobre atos de violência praticados por integrantes de torcidas organizadas.

Por mais que a polícia venha se especializando na adoção de medidas preventivas de novos ataques - chegou até a impedir que torcedores palmeirenses levassem consigo 24 bastões de madeira com prego nas pontas, quando se dirigiam ao estádio no qual seu time enfrentaria o Corinthians -, infelizmente as pessoas irresponsáveis que se infiltraram nas torcidas vêm causando atos bárbaros de violência, a ponto de boa parte da população se manifestar, nas redes sociais e em comentários às notícias, defendendo a extinção das organizadas.

Muito embora casos recentes de violência no interior dos estádios tenham ocorrido e estarrecido a sociedade - e, até mesmo, o mundo, como o da guerra de Joinville, entre membros das torcidas do Atlético-PR e do Vasco da Gama -, em outros Estados da Federação, como é o caso de São Paulo, os atos brutais de violência têm sido registrados com maior frequência fora dos estádios, nas vias públicas.

Foi o que ocorreu no embate entre integrantes da Gaviões da Fiel e da Mancha Alviverde, no terminal de Vila Cachoeirinha, e no embate da marginal Tietê, envolvendo torcedores do Corinthians e do São Paulo.

Se o leitor imagina que o problema da violência é restrito aos brasileiros, está redondamente enganado.

Na Argentina, nove pessoas morreram em conflitos de torcidas, no ano passado; e 12, no ano retrasado. Em 20 de janeiro 2014, o jogador Leandro Grimi, do Godoy Cruz, foi agredido por um torcedor que jogou um pedaço de madeira em suas costas, durante a partida realizada com o River Plate.

Na Rússia, em 11 de março de 2014, os hooligans do CSKA armaram uma emboscada e agrediram os torcedores do Lokomotiv, no interior de um trem.

Na temporada do futebol inglês 2012/13 houve 2456 prisões, a expressiva maioria com a ordem de banimento do futebol, afastando-se de 3 a 10 anos dos estádios o torcedor agressor, incumbindo ao criminoso comparecer à delegacia toda vez que seu time jogar, sem prejuízo de ser proibido de viajar para o exterior, quando a seleção inglesa atua fora do território nacional.

Intolerância

A lei de proteção do torcedor impõe uma série de penalidades às torcidas organizadas, pela prática dos atos de violência. No entanto, as soluções legais aos problemas que vêm se acumulando não estão sendo satisfatórias. Tome-se, por exemplo, a pena de banimento e extinção das organizadas. Tal medida já foi adotada em São Paulo por decisão judicial e, mesmo com a decretação judicial da extinção da torcida organizada, meses depois ela foi constituída sob outra razão social.

Sobre as vítimas dos atos de violência e de homicídios consumados, fica a pergunta: por que elas morrem? As atrocidades cometidas na história da humanidade por conta da intolerância ao diferente são incontáveis e, ainda assim, há pessoas que justificam os atos de violência pelas mais diferentes razões, mas sempre o pano de fundo é o mesmo: o pensar e o agir diferente.

Cogita o agressor: se pensa ou age de maneira diferente da minha, deve morrer. Ou, pelo menos, apanhar muito. O que o agressor pretende com isso?

Quanto tempo mais a sociedade e o poder público assistirão a esse deplorável espetáculo? Quantos mártires da liberdade de expressão no esporte teremos ainda no porvir?

Todos nós sabemos o preço que se pagou pela violação dos direitos humanos que inúmeras guerras religiosas acarretaram, levando milhões de pessoas à morte. O tempo é testemunha, ainda, das atrocidades políticas, pelo simples fato de se pensar ou agir diferentemente do governante, nos tempos de tirania.

Quantos desapareceram e morreram por, simplesmente, divergir do poder? Por que a liberdade de expressão, conquista de séculos da civilização, não é sequer tolerada entre torcedores de futebol?

Religião, política e esporte são três temas que historicamente geram controvérsias. A polêmica, entretanto, não pode ultrapassar o campo das ideias, a opinião não pode prevalecer sobre a vida.

Como se estivéssemos em pleno império romano, apresentamos novos mártires no Circo Massimo: “respeitável público, não serão trucidadas mais apenas as vítimas que pensam diferente sobre religião ou política. Os novos mártires são os mártires do esporte”.

Torcedores que desejam simplesmente exercer o direito de livremente torcer por um determinado clube, mas que são vítimas de atrocidades cometidas não por um grupo de gladiadores, mas por milícias estúpidas que mantêm uma filosofia bestial e ultrapassada de violentar o diferente, de matar quem não pensa como eles pensam.

Para elas, é proibido pensar diferente. É proibido vestir a camisa de outro clube. É proibido defender outro time. Como ditadores, os agressores trucidam suas vítimas. Como hooligans (vândalos), desconsideram o poder estabelecido pela vontade da sociedade que estabelece limitações e é avessa à intolerância.

Embora o problema ainda tenha proporções que ultrapassam os limites do território brasileiro, a contínua busca de novas soluções é imperativa, a fim de se assegurar a paz.

Enquanto o governo federal e os governos estaduais não unirem esforços para a criação de uma nova política criminal, que tenha metas de curto, médio e longo prazo no combate à violência, incluindo-se a violência praticada por pessoas que se escondem em grupos organizados ou espontâneos, como ocorre com as torcidas organizadas de futebol, a sociedade continuará sob o risco de novos mártires do esporte que, longe das quatro linhas do gramado, deram a sua vida pelo simples fato de torcer pelo outro.

A violência não é força, mas fraqueza, nem nunca poderá ser criadora de coisa alguma, apenas destruidora (Benedetto Croce)

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