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Está perdendo a graça a forma como o PT tem abusado do poder

Especial para o UOL

29/04/2014 06h00

O escritor inglês William Golding relata o convívio de um grupo de jovens em uma ilha deserta no romance "Senhor das Moscas". O diálogo entre as personagens Jack e Ralph ilustra a importância do respeito às instituições:

- Precisamos ter regras e obedecê-las. Afinal, não somos selvagens - diz Jack.

Mas, diante de um conflito, Jack as ignora e Ralph argumenta:

- Você está quebrando as regras! As regras são a única coisa que nós temos.

- Que importam as regras? Somos fortes, caçamos - retruca Jack.

Ignorar as instituições e as regras do jogo, implica em namorar a barbárie. A formação hegemônica do atual arranjo partidário, especialmente o PT, não aprendeu com a história.

As instituições construídas aos trancos e barrancos com a Constituição de 1988, e que adquiriram robustez na década posterior, estão sendo desconstruídas em nome de um projeto de poder cada vez mais distante das necessidades da população.

De forma cada vez mais permanente e manifesta, as instituições são assumidas como instâncias para servirem à ampliação e à reprodução desse projeto de poder desde o início do governo.

Interferência governamental

Leituras enviesadas do Caged - registro administrativo gerenciado pelo Ministério do Trabalho por funcionários comissionados subordinados, quase sempre, aos interesses políticos de seus padrinhos - foram motivo de denúncia nos primeiros anos do governo do PT.

As agências reguladoras, que deveriam ser independentes dos poderes econômico e político, deixam de regular mercados e fiscalizar condutas. Passam a fazer parte da contabilidade de cargos para garantir a base de sustentação partidária.

O balanço dessa conduta pode ser avaliado diariamente pelos que frequentam os aeroportos e utilizam seus serviços. Essas pessoas estão à margem daqueles servidos pela FAB ou jatinhos camaradas.

Com a crise de 2008, os temores de alternância no governo potencializaram essa conduta. O BNDES passa a distribuir subsídios com critérios nunca institucionalizados, e de eficácia duvidosa.

Grande parte da elite política apropria-se de cargos estatais que deveriam ser preenchidos por mérito, ao mesmo tempo em que parte da elite empresarial é suscetível de cooptação mediante subsídios que não constam no orçamento aprovado no Congresso.

A ânsia em retomar o dinamismo induz ao uso do gasto público como fonte de aquecimento da economia  - grande fracasso - e ao desrespeito a regras básicas de contabilidade. Analistas econômicos batizaram de contabilidade criativa a manipulação dos dados, ao mesmo tempo em que se esforçam para destrinchar subsídios cruzados, deficits implícitos e dívidas reais, entre outros.

A Petrobras, um patrimônio econômico e simbólico, não escapou à prática. Sua direção deixou de ser escolhida por méritos e se rende à barganha política. O valor da gasolina ignora custos, preços internacionais e necessidades de financiamento do pré-sal, obedecendo à escolha entre inflação e ciclo eleitoral.

A contabilidade criativa no setor interfere no resultado da balança comercial. Atrasos e grosseiros erros ao estimar investimentos viraram norma.

O Banco Central deixou de ser uma instituição com autonomia para perseguir a meta de inflação e passou a ser um apêndice do poder. Sua megalomania em reduzir na marra a taxa de juros é um exemplo disso.

Manipulação de índices

O outrora respeitável Ipea, a partir de 2007, deixou de ser um instituto com objetivo de auxiliar a formatação de políticas públicas. Tornou-se uma usina que confronta um suposto neoliberalismo. Hoje, o órgão faz parte dos despojos a serem distribuídos entre a base aliada e seus erros de planilha são consequência natural da política adotada.

A joia da coroa no processo intervencionista é a crise no IBGE.  A sua independência não era compatível com o conjunto da obra petista. A manipulação de estatísticas importantes com objetivo de alimentar o projeto de poder era uma questão de tempo.

A interrupção da divulgação da Pnad Contínua antes das eleições, por revelarem dados de emprego e renda menos auspiciosos ao governo, não é um fato isolado. A Pnad Contínua - fonte amostral, fruto de anos de trabalho -, de caráter meramente técnico, passou a ser avaliada em termos partidários e de distribuição de poder.

A conversão das estatísticas em braço do poder tem amplos antecedentes nos sistemas totalitários e populistas de nossa região. É o que ocorre com o IBGE da Argentina, o Indec, transformado em peça publicitária do kirchnerismo.

A frase do escritor Paul Valéry, poder sem abuso perde o charme”, sintetiza o que mostram as pesquisas: está perdendo a graça a forma como o PT tem abusado do poder.

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