Linchamento de mulher no Guarujá mostra que internet é capaz de matar
O Marco Civil da Internet, lei que regula o uso da rede mundial no Brasil - assegurando o amplo acesso à informação, bem como direitos e deveres de quem a acessa e a provém de informações - mal tinha 15 dias de vigência quando a tragédia do assassinato de Fabiane Maria de Jesus abateu e chocou o país.
Ela foi linchada por uma turba de populares possuídos por uma ira demoníaca, horda essa turbinada por falsos alertas e denúncias inverossímeis publicadas a partir de uma fanpage chamada "Guarujá Alerta", hospedada no perfil do Facebook de um homem residente na cidade do litoral paulista.
Fabiane tornou-se a mais evidente mártir de um tipo de crime que tende a dinamitar a sociedade brasileira se nada for feito para conter a marcha da insensatez que assola a internet e as redes sociais assassinando reputações e criando mentiras colossais a partir da costura de retalhos de pequenas verdades desconexas.
Cerze-se essa colcha e salpica-se sobre ela a pimenta do ódio, do niilismo, da incivilidade e se chega ao ponto de inflexão em que nos encontramos.
Não era verdade que havia uma mulher praticando magia negra no Guarujá, como afirmava a fanpage local. Tampouco era verdade que crianças sumiam na cidade e morriam em sacrifícios infernais – o "Guarujá Alerta" também divulgava esse falso fato. Às duas mentiras juntaram-se os retratos falados inverídicos da suposta bruxa do Guarujá.
Como o tempero dessa salada de aleivosias irresponsáveis era o posicionamento político da fanpage – sempre contra o poder local, sempre exigindo posicionamentos radicais contra a administração municipal – o assunto ganhou facilmente as rodas de conversas, as mesas de bar, virou tema de debates nas calçadas.
Fabiane, 33, era mãe de duas garotas - de 12 anos e 1 ano -, esposa dedicada à rotina de casa, diarista eventual em casas de famílias e de turistas de fim de semana e religiosa.
Ela viu-se confundida com o demônio que só existia na alma fria e inconsciente da internet alimentada por algum irresponsável, paradoxalmente responsável pela fanpage "Guarujá Alerta", e no subconsciente de um povo que ainda crê ser possível reeditar a Lei do Talião – "olho por olho, dente por dente" – e o princípio bárbaro de quem imagina ser possível fazer justiça com as próprias mãos.
A raiz da tragédia vivida por Fabiane em sua morte selvagem é social, sem dúvidas, mas sua raiz é tecnológica: a internet democrática por natureza, aberta por definição, desfazedora de arranjos sociais confortáveis ao poder estabelecido por missão (afinal, dá voz igual a todos, e tem de ser assim).
A rede carece de padrões de credibilidade que definam o que é joio e trigo, como desde que o mundo é mundo se faz nos veículos tradicionais de comunicação. E que ajudem a separar joio de trigo, fazendo germinar o trigo, disseminando-o, e incinerando o joio.
O corpo disforme e conspurcado de Fabiane, jovem que surgia doce nas fotos inocentes de uma vida plácida em família, publicadas depois da tragédia por reportagens que tentaram explicar o inexplicável e resgatar o que já se alienou, tem de ser o derradeiro sinal de alerta para a sociedade brasileira: internet é capaz de matar. No caso dela, matou com requintes flagrantes de crueldade e vileza.
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