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Qualidade musical da safra dos anos 60 e 70 dificilmente será repetida

Especial para o UOL

28/05/2014 06h00

Em seus variados gêneros, a música brasileira sempre foi envolvente, por sua estrutura técnica, por sua essência popular e pelo talento de seus compositores e intérpretes.

No fluir do tempo e na diversificação dos ritmos, o povo reconhecia a energia nordestina de Luiz Gonzaga, a bossa de Noel Rosa e o eruditismo caipira de Villa-Lobos como eco de seus sentimentos.

Vibrava com a dolência de Pixinguinha, a brasilidade de Ary Barroso e a simplicidade de Cartola e Nelson Cavaquinho. Sofria com as angústias de Dolores Duran, se apaixonava com a ternura de Lúcio Alves e Dick Farney e se enternecia com a malemolência de Dorival Caymmi.

Envolvia-se tanto com os arroubos emocionais de Maysa e Lupicínio Rodrigues quanto com a expansividade de Emilinha Borba e Marlene e a suavidade de Elizeth Cardoso, adotando Orlando Silva, Francisco Alves, Silvio Caldas, Cauby Peixoto, Angela Maria e Nelson Gonçalves como guardadores de seu coração.

Então, a qualidade dessa profusão melódica que tinha o samba tradicional como eixo rítmico começava a extravasar de uma forma diferente nas inflexões vocais de Agostinho dos Santos e nas harmonias dissonantes de Johnny Alf, já prenunciando o que viria a seguir no cenário musical brasileiro.

Bossa Nova

Quando Vinicius de Moraes convidou Antonio Carlos Jobim para musicar os poemas da peça “Orfeu da Conceição”, em 1956, não imaginava que estava criando um marco de qualidade na história da música popular brasileira. Num admirável ímpeto de criatividade, criaram belezas musicais que invadiam os ouvidos da gente com uma sofisticada simplicidade.

A música se fazia mais bela em seus quatro componentes: melodia, harmonia, poesia e ritmo. A melodia de Tom trazia informações harmônicas e estruturais de Debussy, de Ravel e de Villa-Lobos. Acrescentou-se a essa nova melodia expressões poéticas também inovadoras, carinhosas, ditas no diminutivo, coisas de um poeta bem-humorado, sensível, preocupado não apenas com a métrica.

Toda essa transformação vinha embutida na canção “Chega de saudade” e na inovadora batida do violão de João Gilberto anunciando a morada da Bossa Nova. Havia na expressão Bossa Nova uma filosofia universal que a visão poética de Vinicius enxergava: “... Bossa Nova é mais um olhar que um beijo; mais uma ternura que uma paixão; mais um recado que uma mensagem.

Bossa Nova é o canto puro e solitário de João Gilberto buscando uma harmonia cada vez mais extremada e simples nas cordas de seu violão; Bossa Nova é a nova inteligência, o novo ritmo, a nova sensibilidade, o novo segredo da mocidade do Brasil...”.

Segredo revelado na melodia de Carlos Lyra, Roberto Menescal, Oscar Castro Neves e na visão poética de Ronaldo Bôscoli e Newton Mendonça. Logo depois, Baden Powell acrescentaria à Bossa Nova a vibração afro de seu violão, fortalecida pela poesia de Vinicius, que alimentava também, sem economia de versos, as melodias de Edu Lobo e Francis Hime.

MPB

Deixando já o caminho a ser trilhado pelos herdeiros da Bossa Nova, entre os quais eu me incluo, geração de talentos incomuns, formada a partir de 1965, com Chico Buarque de Holanda, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Jorge Ben Jor, Paulinho da Viola, Paulo Cesar Pinheiro, João Bosco, Ivan Lins, Djavan, Guilherme Arantes, que em meio à sofisticação da Bossa Nova recuperaram a música de raiz brasileira dando origem ao que passou a ser chamar de MPB.

Toda essa criatividade avalizada e propagada pelas vozes de Elis Regina, Maria Bethânia e Gal Costa. Instrumentistas de destaque também apareceram, como Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, César Camargo Mariano, Mauro Senise; mais recentemente, Raphael Rabello, Yamandu Costa, Hamilton de Holanda, Toninho Ferragutti, Proveta e sua Banda Mantiqueira...

Até o final do século passado, outros talentos de qualidade se destacaram, como Zeca Baleiro, Zeca Pagodinho, Renato Teixeira, Lenine; as vozes de Maria Rita, Mônica Salmaso, entre outras, mantendo a tradição da variedade musical e da criatividade flexiva da música popular brasileira. Sem dúvida, é uma safra de grandes valores.

Mas a qualidade da safra dos anos de 1960 e 1970 dificilmente será repetida... Nestes primeiros anos do século XXI podemos citar alguns nomes como Chico Saraiva, Antonio Loureiro, Bruno de la Rosa, Diogo Nogueira. E tem muita gente vindo por aí. A música é nosso maior patrimônio – a mistura de raças nos proporcionou a maior diversidade musical do mundo.

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