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Arrogância utópica do Cinema Novo não mudou a história do país

Especial para o UOL

21/07/2014 06h00

No pequeno prefácio de meu livro “Vida de Cinema”, digo que é sempre perigoso olhar para trás. Desde que Eurídice virou estátua de sal quando Orfeu olhou para trás, as lendas e os mitos humanos desaconselham o uso de retrovisor.

Isso não significa que devemos ignorar tudo que nos aconteceu ou o que aconteceu no mundo enquanto marchávamos para a frente. O passado é uma referência permanente em nossa vida, uma chama inextinguível em nossa alma, um mapa criptográfico para o futuro. O passado nem sempre passa, fica muitas vezes inscrito em nosso comportamento e, se bobearmos, pode até nos governar para sempre.

Minha narrativa não segue esse estilo, um documento nostálgico de uma época ou um relato tenebroso do que nem sempre foi bom. Trata-se apenas de uma reportagem memorialista, uma lista de acontecimentos do tempo em que vivi. Sobretudo do tempo em que vivi como cineasta, ou seja, quase toda a minha vida, da adolescência até hoje.

Desses acontecimentos, o mais importante para mim foi o de ter feito parte do grupo que criou o Cinema Novo. A fundação de um cinema moderno no Brasil foi um marco de nossa história cultural, capaz de influenciar outras artes e a própria vida social do país. O Cinema Novo foi uma sugestão de comportamento diante do mundo concreto e diante da arte em nossas almas, inventado por uma geração de cineastas que também eram pensadores.

Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Paulo Cesar Saraceni, David Neves, Gustavo Dahl e mais uns poucos não faziam apenas cinema. Eles tinham um compromisso com um programa artístico, cultural e político que pode ser reduzido a três modestos pontos: mudar a história do cinema, mudar a história do Brasil, mudar a história do mundo.

É claro que essa arrogância utópica era inalcançável. Nossos filmes não foram capazes de transformar a realidade, mas foram  muito bem sucedidos no jeito de fazer o público entender o Brasil e o mundo de outra maneira. Deixamos rastros. Não só no cinema, mas também na literatura, na poesia, no teatro, na música do país. O Cinema Novo, para mim, foi produzido pelo encontro das pessoas mais generosas, inteligentes e afetuosas que já conheci.

Narrar mais de 50 anos de história pessoal e cinematográfica não foi propriamente doloroso de fazer. Foi apenas trabalhoso, pesquisando em meus arquivos e nos arquivos dos outros o que poderíamos chamar de verdade. Embora um de meus mestres diga que não existe a verdade, mas apenas versões dos fatos, e cada um tem a sua.

Não se tratava tampouco de se vingar do passado com arrogância ou ressentimento. Detesto isso que críticos literários norte-americanos passaram a chamar de “auto fiction”, uma maneira de tornar sua biografia exemplar pelo relato mais vasto possível do que nem sempre lhe aconteceu.

As muitas páginas de minhas memórias, ao contrário, são uma homenagem à dedicação do autor a uma vida pública e agitada, mas também a um tempo em que acreditávamos que mudar o mundo era o resultado de nosso puro e ardente desejo pessoal. Não pretendo morrer ou me aposentar, quero continuar por aí, fazendo filmes e escrevendo coisas. Mas, agora, depois dessa “Vida de Cinema”, tenho o direito de me dedicar a esquecer um pouco.

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