Topo

Delação premiada dá à palavra do criminoso a força da verdade

Especial para o UOL

13/09/2014 06h00

“Pode ser que nos guie uma ilusão; a consciência, porém, é que não nos guia” (Fernando Pessoa)

Depois da panaceia das investigações baseadas quase que exclusivamente em interceptações telefônicas, como primeiro e, muitas vezes, único instrumento de investigação, estamos às voltas com o mais “moderno método”: a delação premiada.

Confesso que tenho aversão a este método até por uma questão de princípio. Não me parece ser a melhor maneira de forjar a têmpera de um povo, em um estado democrático, o incentivo à deduragem, principalmente se ela for feita em um regime de barganha, e sendo impossível o seu controle.

Quem delata confessa que é criminoso, mas quer o perdão do Estado para poder entregar seus companheiros de empreitada. Os que ele, delator quiser, e só os que quiser. Aquele que por ventura tenha a chave do cofre, para poder repartir no futuro o produto não delatado, este será preservado.

Por outro lado, aquele que, ao longo da vida o atrapalhou, até por não ter querido ser cúmplice, este será escolhido para o abate. Seletivo, amoral, sem critérios - a não ser os do delator, que, quando chega a este ponto, a mim parece claro, não se deve esperar qualquer sinal de caráter.

A delação é a arma preferida dos governos ditatoriais e totalitários de todos os tipos. Com a delação, o Estado esmaga os vínculos, espúrios ou não, entre os cidadãos, desequilibrando o equilíbrio e a coesão que devem existir entre Estado e sociedade civil.

Mas o pior é o “aprimoramento” que agora se faz. A delação é realizada sobre total segredo - outra famosa arma dos estados autoritários. Vaza-se a delação só quanto aos nomes citados, sem dizer em que contexto e qual a acusação. Ora, o primeiro direito do cidadão, por paradoxal que possa parecer, é ser bem acusado. Neste momento as acusações pendem sobre a cabeça de vários sem sequer ter forma e conteúdo.

A delação secreta, vazada de forma seletiva, é um instrumento de inversão da democracia em pleno regime democrático e deve ser repudiada pelos órgãos de imprensa, pelos diversos grupos políticos e, sobretudo, pelo Poder Judiciário.

O poder desse instrumento é tal que seria bem possível que as eleições, em nosso país, fossem decididas por um delator. Por hipótese, se este delator disser que falou com a presidente Dilma sobre ajuda de campanha, as eleições de outubro estariam definidas, ainda que tal fosse uma mentira grosseira.

É muito grave este momento. Estamos às portas de uma eleição presidencial. Elege-se a voz de um delator como o grande eleitor, e ata-se a ele os destinos da nação.

Na Itália, na Operação Mãos Limpas, tão citada quanto desconhecida da grande maioria, a delação foi usada a granel para afastar o Estado do jugo da máfia. Mas logo após vieram os efeitos maléficos, perceberam o uso maldoso, parcial e dirigido de várias das delações. Buscaram aí as revisões criminais, mas estas não servem para resgatar a honra perdida, a vida que se esvaiu com a acusação sem provas, sem rosto, mas com ares de verdade absoluta.

Em última hipótese, que se aceitasse uma delação como princípio de uma investigação, com a contrapartida do perdão ao final do processo em se confirmando as acusações, mas nunca com este pré-julgamento de pessoas que, muitas vezes, não sabe sequer de que estão sendo acusadas.

Inverte-se o princípio. Quem tem a força da verdade é a palavra do criminoso confesso, não o Estado e seus agentes que têm a obrigação de promoverem investigações com a preservação dos direitos dos investigados. É o regime do terror que se aperfeiçoa com os vazamentos criminosos e desmoralizantes, onde ao acusado resta negar sem saber qual é a acusação.

Triste país onde se abalam as estruturas com acusações sem contorno definido, sem um aprofundamento do que se acusa, sem um entender a quem servem estas acusações. É claro que toda e qualquer acusação que chega ao conhecimento do Ministério Público ou da Polícia, duas entidades respeitadas, tem que ser levada a frente a ferro e fogo. Até pouco tempo não era assim no país, e é bom que seja.

E é natural que deduzida a acusação formal, com provas e respeitado o devido processo legal, ao judiciário cabe dar a última palavra. Mas nesta época de insegurança, de sombras e de acusações sem corpo, a defesa é obrigada a se posicionar sem saber contra o que. Faz-se um arremedo de defesa, uma defesa pela metade. E quem é atingido neste caso é o estado democrático de direito, pois uma condenação prévia, sem o amplo exercício das garantias constitucionais não serve a nenhum regime que se pretenda democrático.

O pior é que quem for citado pelo delator, ainda que completamente inocente, estará fadado a ser um condenado pela opinião pública, mesmo estando com a verdade ao seu lado, pois, como dizia Dostoiévski, “a verdade verdadeira é sempre inverossímil”.

  • O texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL
  • Para enviar seu artigo, escreva para uolopiniao@uol.com.br