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Transformar Minhocão em parque devolve a cidade para as pessoas

Especial para o UOL

12/10/2014 06h00

Em texto publicado em 24 de setembro de 2014, na seção “Opinião” do jornal Folha de S. Paulo, o arquiteto Guilherme Wisnik discorreu sobre as iniciativas do prefeito Fernando Haddad para o enfrentamento dos graves problemas de mobilidade urbana em São Paulo, tais como a ampliação das ciclovias e das faixas exclusivas de ônibus.

Wisnik afirmou que elas confrontam “tabus cruciais de nossa sociedade, como o protagonismo do carro na cidade” e as inseriu num processo que denominou de “virada civilizatória”.

O protagonismo não é novo. Em 2006, um projeto da prefeitura, à época sob administração de Gilberto Kassab, culminou na "Lei Cidade Limpa”, que forneceu nova disciplina à publicidade no espaço urbano da cidade, com o compromisso de garantir a “supremacia do bem comum sobre qualquer interesse corporativo”.

No Estado de São Paulo, desde 2009, por iniciativa do então governador José Serra, vigora a Lei nº 13541, que proíbe o consumo de cigarros e derivados nos recintos de uso coletivo, total ou parcialmente fechados.

Os três exemplos, colhidos em administrações com perfis ideológicos diferentes, representam escolhas polêmicas, que causaram conflitos e fizeram aflorar tensões.

Esses projetos tiveram como pano de fundo o caráter conflituoso da cidade, permanente campo em disputa. Não foram unânimes e tampouco derivaram de clamor público. Cada um dos administradores teve que lidar, ainda que de maneira transitória, com algum grau de impopularidade.

O quadro ilustra um problema próprio da política democrática contemporânea: como tomar decisões que sabidamente beneficiam a maioria das pessoas se essa mesma maioria parece preferir o contrário?

Recolocando em outros termos: se o uso público da razão e a opinião pública são componentes que conferem legitimidade às tomadas de decisão nos regimes democráticos, é possível desautorizá-los? Sob qual fundamento?

É certo que o tema envolve uma reflexão maior sobre o grau de maturidade da opinião pública, que não cabe discutir aqui.

Futuro do Minhocão 

Uma forma de enfrentar o desafio passa pela eliminação das falsas questões. E uma delas é o destino do Elevado Presidente Arthur da Costa e Silva, o icônico Minhocão. Uma pesquisa do Datafolha de 23 de setembro de 2014 indicou que 53% dos entrevistados desejam que o Minhocão fique como está. Outros 23% apoiam a ideia do parque elevado e 7% preferem sua demolição.

Por um lado, é notável que a ideia apoiada pela Associação Parque Minhocão criada em agosto de 2013, tenha sido incorporada, em tão pouco tempo, no imaginário de 23% dos habitantes da cidade. Por outro, é curioso perceber que parte substancial das pessoas desconhece que o instrumento legal de planejamento urbano responsável pelo desenho da cidade nos próximos 16 anos – o Plano Diretor Estratégico (PDE), aprovado em agosto de 2014 – não contempla a hipótese do “deixa como está”.

De acordo com o Estatuto da Cidade, o PDE é o instrumento que define a função social da propriedade urbana e tem sua elaboração e fiscalização vinculadas à promoção de audiências públicas, com a participação da sociedade civil.

O PDE ainda assinala que a “lei específica deverá ser elaborada determinando a gradual restrição ao transporte individual motorizado no elevado Costa e Silva, definindo prazos até sua completa desativação como via de tráfego, sua demolição ou transformação, parcial ou integral, em parque”.

O consenso produzido pela sociedade paulistana apontou expressamente para a desativação e isso foi institucionalizado no PDE através de múltiplas decisões políticas que acolheram essa escolha das pessoas. As hipóteses disponíveis são a demolição ou a transformação em parque.

Causa assombro que uma lei produzida através de um intenso processo de participação social, como aconteceu com o PDE, ainda seja uma ilustre desconhecida. Isso talvez diga muito a respeito da qualidade de nossas cidades.

Não se trata, portanto, de tomar decisões impopulares para uma maioria que ignora ser destinatária do caráter benéfico dessas escolhas. A questão, porém, cria um novo problema: por que, mesmo autorizado por lei criada por processos participativos, o administrador pode retardar ou descumprir a lei?

O comportamento político, muito sensível a pesquisas de opinião, está no centro da questão. Mas é necessário compreender que pesquisas de opinião fornecem quadros parciais e cada vez mais imprecisos.

O burburinho criado pelas redes sociais, mesmo aquele protagonizado por minorias barulhentas, também entra na conta. A própria falta de consenso dos representantes acerca das causas e efeitos dos movimentos de junho de 2013 evidencia que a representação tem dificuldades para interpretar o tempo presente.

Nada obstante, a virada civilizatória não pode parar. O Parque Minhocão já é realidade para milhares de paulistanos que o utilizam como equipamento de lazer nos períodos em que permanece fechado. É um parque linear que passa sobre quase 30 cruzamentos.

As universidades brasileiras dispõem de soluções técnicas criativas para amenizar seus efeitos danosos para o entorno, e o próprio caráter participativo do planejamento urbano permite que as pessoas participem do desenho de seu projeto.

O tema suscita discussões sobre o estabelecimento de zonas especiais de interesse social para evitar os efeitos da gentrificação. Estamos diante de um laboratório de boas práticas, importantes para compreender e enfrentar os desafios da cidade.

O Parque Minhocão tem a cara da cidade do futuro: a cidade para as pessoas, o favorecimento do coletivo frente ao individual e a produção de espaços de convivência. Ousemos incluí-lo na “virada civilizatória”!

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