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Negar visto a 'instrutor de paquera' posiciona Brasil contra estupro

Especial para o UOL

17/11/2014 06h00

“Vou te ensinar a burlar o consentimento delas. Paguem-me e estuprem todas”.

Com a frase acima eu lhes apresento Julien Blanc, um missionário do estupro. Esse “artista da pegação” fez carreira viajando o mundo e ensinando homens inseguros a levarem mulheres para a cama - se precisar, usando a força. Em janeiro, Blanc quer vir ao Brasil, onde alguns topariam pagar US$ 2400 para participar de suas conferências.

O que eles aprenderiam? Uma das táticas de Blanc, registrada em vídeo para quem quiser ver, envolve abordar mulheres em locais públicos e empurrar suas cabeças até o pênis. Outra estratégia da conquista: enforcar mulheres em mesas de bar.

Esse é o tipo de homem que você gostaria que ensinasse a seus irmãos ou filhos como tratar as mulheres? Esse é o tipo de homem que você gostaria que saísse com sua filha?

Mas um movimento vem ganhando força para tirar Blanc do negócio. Há alguns dias, ele foi expulso da Austrália depois que cidadãos convenceram o governo a suspender seu visto.

Campanhas contra ele também ganharam fôlego na Inglaterra, no Canadá e no Japão. Os brasileiros embarcararam nesta luta e fontes do Itamaraty já afirmam que os diplomatas foram instruídos a não dar o visto ao “paquerador”. Se for confirmada oficialmente, essa será uma vitória do povo contra a cultura do estupro.

Cerca de 230 mil pessoas já assinaram uma petição, criada por um grupo de mulheres, pedindo que a Polícia Federal e o Itamaraty não permitam que Blanc entre no país.

E aqui vai a melhor parte: os assinantes não são apenas mulheres, mas homens de todas as idades. Homens que sabem que esse não é o tipo de aulas que seus amigos, filhos, irmãos e pais precisam. Nem eles.

É um pedido justo, já que os ensinamentos de Blanc estimulam a violência contra a mulher e ignoram seu direito ao consentimento.

A lógica que Blanc segue não é nova, especialmente no Brasil. É a mesma linha de pensamento de 1 a cada 4 brasileiros que responderam a uma pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) no começo deste ano. Eles afirmaram que mulheres que mostram muito o corpo merecem ser atacadas. É a lógica de que mulheres devem se proteger do estupro, e não que homens não devem estuprar.

Opinião - Nana Queiroz 4

  • Vamos manter Julien Blanc fora do Brasil, mas não só: vamos usar essa oportunidade para cortar a cultura do estupro pela raiz

    Nana Queiroz, jornalista e idealizadora da campanha "Eu não mereço ser estuprada", sobre o movimento para pedir que o Itamaraty não conceda visto a Julien Blanc

À época, os resultados dessa pesquisa me motivaram a criar, junto a milhares de mulheres, a campanha “Eu Não Mereço Ser Estuprada”. Durante a campanha eu aprendi como não precisamos das “lições” de Blanc no Brasil.

Como uma das porta-vozes da campanha, recebi cerca de 500 mensagens de ódio, que incluíam ameaças de estupro contra mim e membros da minha família. Precisei parar de trabalhar, de sair, de viver.

Vejam: o estupro vai muito além de uma violência física terrível. Ele não é apenas um crime, é uma cultura criminosa. E toda cultura tem seus professores e gurus. E Julien Blanc é um deles.

A cultura do estupro é um conjunto de mentalidades que são repetidas para menosprezar o impacto do estupro ou diminuir a culpa do agressor. Por exemplo, acreditar que existe meio termo para o estupro é um dos ensinamentos desta cultura. Culpar a vítima pelo estupro ou afirmar que o estuprador “foi provocado e não tinha como se controlar” são outros. E pregar o sexo a qualquer preço é o mais famoso dentre eles.

Alguns defensores de Blanc questionam: “Mas por que levar isso tão a sério? Ele está apenas ajudando nerds a transar”. Não, não é só isso. Julien está ensinando o bê-a-bá do estupro.

Isso porque o estupro, na maioria dos casos, não acontece em um beco escuro. Ele começa, sim, com um homem chegando perto demais em uma festa, sem autorização. Com alguma droga sendo despejada numa bebida. Com alguma garota sendo enganada a ir a um local em que ela não deseja estar.

Os números não mentem: em 80% dos casos de estupro, as vítimas conhecem seus estupradores.

Vamos manter Julien Blanc fora do Brasil, mas não só. Vamos usar essa oportunidade para cortar a cultura do estupro pela raiz. E aqui vai um bom lugar para começar: há um projeto de lei no Congresso, de autoria do deputado Romário, que criminaliza o tipo de assédio ensinado por Julien Blanc, assim como os encoxamentos nos transportes públicos.

Todo ano, mais de 50 mil brasileiras são estupradas - e essa estimativa é provavelmente bem menor que a realidade, já que apenas 35% denunciam o crime. Eu amo muitas mulheres que já foram estupradas, dividi a sua dor, chorei o seu choro. Com números tão grandes, é bem provável que você também. 

Mas nós só vamos combater o estupro de verdade quando derrotarmos a cultura que lhe dá origem. Manter Julien Blanc fora do Brasil é apenas um começo - mas é um começo bom à beça!

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