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Nem todo brasileiro escuta funk ou joga bola, mas todos comem farofa

Especial para o UOL

02/01/2015 06h00

Uma passagem ocorrida comigo na residência da minha mãe, em Maceió, me fez pensar. Maria, uma criatura de alma pura e muita bondade, que trabalha para minha família desde sempre, estava ao meu lado cozinhando. Assim que preparei um ceviche, ela me perguntou:

- Seu Gustavo, o senhor vai fazer o peixe dessa marinada frito ou moqueca?

- Não, Maricota, está pronto, ceviche se come assim mesmo!  

- Cru?

- É, cru!

- Vixe que eu fiz ceviche a vida toda e não sabia.

A cozinha advém da cultura e vice-versa. O conhecimento culinário e hábitos alimentares populares de uma comunidade expressam mais sobre quem somos do que qualquer outra atividade.

Na cozinha é onde se desenvolve o sentido mais íntimo de coletividade social, pois nem todo mundo joga bola, lê Guimarães Rosa ou escuta funk carioca, mas todo mundo come farofa. 

Partindo dessa máxima, o que pensar do futuro de nossas idiossincrasias? Temos uma das mais incríveis biodiversidades do mundo e só usamos em grande maioria ervas, legumes, verduras e grãos “gringos”, salsinha, coentro, orégano, alecrim, tomilho, alface, brócolis, couve-flor etc.

Podemos ficar aqui até amanhã dando nome aos bois (aliás, o boi também é gringo) e ainda assim teríamos uma infinidade de outros exemplos do que comemos e que não é oriundo de nossas terras. 

Opinião 1 - Guga Rocha

  • Devemos nos voltar para as raízes e nos perguntar o que mateiros, benzedeiras, pajés, quilombolas, caiçaras e ribeirinhos comiam ou comem

    Guga Rocha, chef, sobre resgate da tradição culinária brasileira

Vejo muito da potencialidade de nossa cozinha, enquanto objeto de projeção internacional do país, voltando-se para a pesquisa do novo. Imaginem quantas ervas fantásticas temos em nossas matas, florestas, cerrados e manguezais, quantas frutas e verduras! E nós simplesmente não as conhecemos. Estão lá, nos aguardando como um Santo Graal, enquanto a monocultura não destrói nossa biodiversidade.

Devemos nos voltar para as raízes. O que nossos mateiros, benzedeiras, pajés, quilombolas, caiçaras, ribeirinhos comiam ou comem? Quais riquezas ainda utilizam que não conhecemos, quais sabores?

"As aves que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá", o poeta Gonçalves Dias estava mais do que certo. Temos que procurar nossa verdade tropical, conhecer nossa fauna e flora.

O mundo espera isso de nós: trazer o novo, afinal, somos a juventude do mundo. Dediquemo-nos a busca pela raíz não conhecida da nossa árvore sociocultural.  

Somos uma cozinha rica, vibrante e em construção. Os cozinheiros que agora pipocam pelo país têm a obrigação de aprender, salvaguardar e desenvolver técnicas para nossas riquezas.

O material humano é tão importante quanto o produto. Não adianta o baru estar no pé e ninguém saber que é comestível, não adianta olhar para fora e querer copiar, temos que olhar para dentro de nossa alma e nos inspirar. 

Façamos a ligação entre cerrado, floresta, pampas, litoral e nossa mesa. Temos que ensinar ao produtor que se ele plantar cará roxo as pessoas vão comprar; que se a compota for de pitanga, os turistas vão levar; que coquinho de guariroba salgado é um petisco incrível para acompanhar uma cerveja de micro cervejaria com mandioca adicionada à fermentação.

Que paremos de ter vergonha de quem somos e abracemos nosso país e nossas veredas com amor e curiosidade. O futuro da cozinha brasileira não está em uma pessoa ou uma ideia, está em nos descobrirmos.  

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