Topo

Discurso de sustentabilidade é idealista e não muda hábitos

Especial para o UOL

08/01/2015 06h00

O conjunto dos dados científicos sobre o clima indica claramente que o processo de aquecimento global é uma realidade. As medidas da razão isotópica de carbono demonstram que a queima de combustíveis fósseis, utilizados para atender à nossa crescente demanda por energia e consumo, é a maior responsável pelo aumento das concentrações de CO² na atmosfera.

Eventos extremos parecem atestar o novo cenário climático com o qual teremos que conviver: alternância de períodos chuvosos intensos com episódios de seca; o surgimento de surtos de doenças que têm insetos como vetores em áreas temperadas; ocorrência de ciclones onde nunca os houve.

A ciência e a nossa simples capacidade de observação indicam a urgente necessidade de redução das emissões de gases de efeito estufa, mas diversas razões nos levam a resistir à adoção de políticas energéticas sustentáveis.

O ser humano não é somente vítima, mas também o principal elemento causador da deterioração ambiental do planeta, mercê da cultura do consumo excessivo. 

Inicialmente, carros duravam décadas. A partir de meados dos anos 1960, consolida-se a obsolescência programada, ou seja, a existência de produtos com sentença de morte definida e vida curta. A partir dos anos 1990, o processo de indução de demanda passa a ser mais sofisticado, com o conceito de obsolescência percebida.

Embora nosso telefone celular esteja funcionando perfeitamente, um novo aparelho, com algum pequeno avanço técnico ou estético, nos faz sentir que somente seremos dignos de sermos chamados seres humanos após a compra do novo brinquedo. Buscamos nossa felicidade comprando coisas que talvez não precisemos.

Urbanização e sustentabilidade

É nas cidades que a questão das emissões tem seu cenário predileto. Nas últimas décadas, o mundo vem se tornando cada vez mais urbano. É para manter as cidades que se emite a maior parte dos gases de efeito estufa, assim como os poluentes atmosféricos de ação local como fuligem, e gases como ozônio e dióxido de enxofre.

Para nos movermos nesse sistema, abdicamos de caminhar e optamos pelo confortável rodar dos pneus, nos enclausuramos em caixas de metais e emitimos substâncias que prejudicam o planeta e também a nossa saúde. Apesar de todo o gasto excessivo de energia, nossa capacidade de locomoção cai ano a ano, a ponto de nos movermos em velocidade inferior à de nossos antepassados, que cavalgavam no lombo de suas mulas.

Perdemos tempo de sono, de lazer e de convívio com aqueles que amamos em artérias urbanas obliteradas por “trombos veiculares”. Nosso nível de estresse aumenta nesses momentos, dado que dirigir em uma cidade como São Paulo está longe de ser uma experiência de iluminação espiritual.

O sombrio cenário descrito representa uma grande oportunidade de transformação de hábitos, utilizando-se de argumentos que digam mais respeito ao cidadão comum. O discurso da sustentabilidade que hoje propomos apela para o idealismo e não toca em um dos pontos centrais da psique humana: o egoísmo.

Dizemos para as pessoas que deixem o carro na garagem, fiquem no escuro à noite, tomem banho de canequinha e não comam carne vermelha. Se assim procedermos, a temperatura da Terra começará a cair de hoje a 100 anos, e o primeiro ser vivo beneficiado será o urso polar.

Talvez esse não seja um discurso capaz de alterar o comportamento de pessoas acostumadas a consumir de forma quase compulsiva. Porém, será mais fácil convencer alguém a deixar o carro na garagem se dissermos que caminhar até o ponto onde pegamos o transporte coletivo nos fará perder peso e melhorar nossa saúde física e mental.

Questão de saúde

Pode-se dizer que a maior parte das políticas voltadas para a sustentabilidade do planeta - como o estímulo ao consumo de frutas e verduras, o desestímulo ao consumo de carne vermelha e a utilização de fontes de energia de baixa emissão - são, ao mesmo tempo, promotoras de efeitos positivos e imediatos para a saúde de quem as pratica.

Caso os profissionais de saúde se envolvam nesta temática, estarão se envolvendo na discussão das mudanças climáticas, onde o tema saúde humana quase não tem destaque. Os atores principais dessa discussão são de natureza econômica, industrial e política.

Os seres humanos que mais sofrem com a poluição do ar são aqueles que vivem nas regiões menos favorecidas. Caso o planeta mantenha o atual cenário de emissões, serão também os mais pobres que mais sofrerão o impacto da fome, da escassez de água, das doenças infeciosas, das inundações, dos deslizamentos de terra etc.

A saúde não deve se furtar a esta discussão, defendendo a espécie humana. Proteger o urso polar caminha na mesma direção da fundação da “Sociedade Protetora do Ser Humano”. Esta nova sociedade virá ocupar a lacuna hoje existente, participando da formulação de políticas em áreas pouco frequentadas pelos profissionais da saúde, como transporte, fontes energéticas e planejamento urbano. 

  • O texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL
  • Para enviar seu artigo, escreva para uolopiniao@uol.com.br