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Fui vice de Tancredo porque provoquei a ruptura do PDS

Especial para o UOL

15/01/2015 06h00

A eleição de Tancredo pelo colégio eleitoral foi a maior das engenharias políticas construídas pelos homens públicos brasileiros para atravessar uma situação de crise, no caso uma grande crise: a passagem do regime militar, com poder absoluto, para o regime do estado de direito.

Essa construção foi fruto da nossa capacidade. Em todos os momentos de nossa história, os políticos brasileiros preferiram salvar o país a deflagrar uma guerra entre partidos ou pessoas, como ocorre em toda a América Latina - sendo exemplo maior a Argentina, que não conseguiu ultrapassar nenhuma crise sem quebra da legalidade e sem reflexos de violência na sociedade.

Quero citar os exemplos da renúncia de Jânio, do golpe de 11 de novembro, do suicídio de Getúlio, da deposição do Jango e da própria revolução de 30. Isso sem falar da nossa Independência, quando transformamos um príncipe português em um imperador brasileiro, e da construção da República, em que a composição entre monarquistas e republicanos evitou uma guerra civil — a população era monarquista, e a instauração da República nada mais foi do que um golpe militar, com o qual fizemos uma mudança de regime.

No Brasil, o colégio eleitoral foi uma exigência de Castelo Branco, que a vida inteira fora legalista, não tendo participado dos reiterados levantes tenentistas da sua geração e, admirador dos udenistas, desejava revestir o poder de legalidade, enquanto nada mais era do que o rompimento da ordem constitucional.

Assim, ele só aceitaria ser presidente se fosse eleito. E criou-se o colégio eleitoral para esse fim. Acontece que ele cumpria a formalidade, mas não tinha capacidade de legitimar sua investidura. Castelo Branco, sendo general, fez uma coisa que possibilitou acabar com o militarismo no Brasil: limitou a permanência dos generais nos seus postos de comando a quatro anos, acabando com aquilo que ele mesmo chamava de “generais chineses” no Exército, que somente deixavam o posto quando morriam.

Opinião 1 - José Sarney -  -
Tancredo Neves e José Sarney (dir.) comemoram resultado do colégio eleitoral, em 1985

No começo da década de 1980 a oposição conseguiu mobilizar a opinião pública brasileira, levantando a bandeira de que esse colégio era ilegítimo — como o era, de fato — e que era necessária a volta da absoluta democracia, com a eleição direta do presidente. Preparada a nação por essa doutrinação, e havendo resistência dos militares que queriam permanecer no poder, criou-se o impasse, do qual, em tese, somente sairíamos por meio da força, isto é, do enfrentamento.

Assim os militares não aceitavam candidato civil, e o colégio eleitoral, obediente às forças vitoriosas em 64, não tomaria outra posição. Mas apresentou-se uma clareira para que os políticos pudessem atuar: Figueiredo, picado pela mosca azul, queria permanecer no governo por meio da prorrogação do seu mandato, tese apoiada pelos partidos comunistas e pelo governador Leonel Brizola, que se tornaria o teórico da solução, uma vez que Figueiredo comprometia-se, prorrogado o seu mandato, a fazer eleição direta.

Como ele não dispunha de prestígio dentro da tropa, mandou fazer uma consulta a todos os generais, mas estes se manifestaram contra sua permanência no governo. Diante desse fato, apresentou o seu candidato, que devia ser Paulo Maluf, para embaralhar o processo eleitoral.

Não sabia ele que os políticos, atentos a cada movimento, encontraram aí um caminho de libertar o colégio eleitoral da tutela militar: dar-lhe condição de eleger livremente um presidente. Para isso, buscaram o que sempre se fizera na história do país: unir as forças contrárias em torno de um objetivo de transição. O grande óbice era que a pregação pela eleição direta levava a oposição a recusar o colégio eleitoral.

Apoio de militares

Então se encontrou a fórmula na qual, se a eleição fosse direta, o candidato seria Ulysses; se fosse indireta, seria Tancredo. A partir daí, com a divisão do PDS, partido do governo, juntarem-se forças para obter a maioria no colégio eleitoral e a aceitação da oposição de dele participar.

Com a minha renúncia do cargo de presidente do PDS, juntei-me a Aureliano Chaves, Marco Maciel, Jorge Bornhausen e Guilherme Palmeira e chefiamos a arregimentação de grande parte dos delegados do PDS para essa fórmula. Montoro encarregou-se de obter de Ulysses a concordância em participar do colégio eleitoral.

Ele a obteve e, numa solução de compromisso, com Aureliano Chaves — que era o vice de Figueiredo — indicando o candidato a vice-presidente da República, conseguiríamos controlar o colégio eleitoral e eleger o presidente.

Para isso, tínhamos que ter apoio de uma parcela dos militares, uma vez que a maioria deles não queria entregar o poder. Conseguimos que líderes das Forças Armadas — no Exército, o general Leônidas Pires Gonçalves; na Marinha, o almirante Maximiniano da Fonseca; e, na Aeronáutica, o brigadeiro Murilo Santos — assegurassem que podíamos marchar ao encontro da solução política.

Tudo isso levou muito tempo e uma grande capacidade de arregimentação e aliciamento, o que fizemos com absoluto êxito. Assim, num longo trabalho e com o maior desejo de voltarmos ao estado de direito, uma unanimidade da classe política, construímos a vitória no colégio eleitoral.

A minha escolha para vice foi feita porque fora eu quem deflagrara a ruptura do PDS. Com a minha renúncia, Tancredo achou que eu tinha o controle de muitos delegados e conhecimento de todos, e resumiu seu ponto de vista numa frase: “O Sarney conhece o mapa da mina”.

Os companheiros do PDS reconheceram o meu protagonismo no episódio, e Aureliano Chaves, com absoluta determinação e contra a minha vontade — eu desejava que o vice-presidente fosse Marco Maciel —, disse a Ulysses e ao PMDB: “Sem o Sarney, não teremos aliança”.

Essa foi a última manobra da escolha da fórmula que nos levaria, unidos, a construir o que, na história do Brasil, era uma tradição: atravessar crises com uma solução de consenso. Quando, no dia 15 de janeiro de 1985, no Colégio Eleitoral, o deputado João Cunha deu o 344º voto, já tínhamos certeza de que a vitória estava assegurada. Por isso mesmo, não tivemos grande surpresa. Mas, naquele momento, chegava ao fim um processo de engenharia política.

Hoje, quando o olhamos no tempo, não chegamos verdadeiramente a compreender como ocorreu esse milagre. Eu me reportava sempre a Ulysses quando alguns grupos queriam que entrássemos num processo revanchista: “Não se esqueçam de que não vencemos os militares, e sim formamos um processo civil, por meio de uma engenharia muito bem construída, de homens públicos preparados, numa missão na qual o país estivesse acima dos interesses partidários”.

Assim foi que não só restauramos a democracia no país, como também restauramos as eleições diretas, com absoluta liberdade de imprensa, e, sem preconceitos de raça, de religião ou qualquer outro, construímos uma sociedade democrática, cuja base foi a constituinte. Hoje já podemos comemorar o mais longo tempo em que o país desfruta da sua Constituição sem truncamentos institucionais.

Tenho grande orgulho de ter participado, como protagonista, desse processo, e de ter chefiado a transição, de cujos resultados o povo brasileiro hoje desfruta.

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