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Crise hídrica derruba a crença de que gatos e água não combinam

Especial para o UOL

15/02/2015 06h00

Li na imprensa que há um aumento de um tipo de crime inusitado na cidade de São Paulo – o roubo de água! Não que a dura rotina criminal de Sampa me surpreenda. Nasci, vivo e morrerei nesta cidade. Conheço, portanto, em detalhes todos os tipos de furtos que, aos milhares, acontecem na minha cidade.

Alguns são espetaculares, com efeitos pirotécnicos criados no explodir de caixas eletrônicos. Outros são quase considerados uma norma habitual do viver em São Paulo, onde celulares e carteiras são surrupiadas e conduzidas celeremente por pés paulistanos protegidos por sandálias havaianas, em corpos de pessoas situadas na incerta fronteira entre a infância e a adolescência.

Este tipo de roubo é praticado geralmente por aqueles que vivem nos limites entre a cidade consolidada e as cracolândias. Há também furtos cruéis, onde vidas são trocadas por quase nada, por tiros disparados por gestos não programados das vítimas. 

Apesar da minha longa vivência em Sampa, a existência de “gatos” de água me surpreendeu. Pessoas físicas e jurídicas passaram a furtar água dos vizinhos, na iminência inexorável do racionamento. A agência que supostamente deveria fornecer água aos paulistanos – a Sabesp – criou uma força tarefa para identificar os furtos. Em Chicago, durante a lei seca, foram criados os intocáveis. Em Sampa, também em um processo de secura, a Sabesp cria os imolháveis.

Opinião - Paulo Saldiva - Luis Moura/Estadão Conteúdo - Luis Moura/Estadão Conteúdo
Governo de SP encontrou nova reserva de água no sistema Cantareira
Imagem: Luis Moura/Estadão Conteúdo

Os “gatos” sempre foram uma prática constante para alguns objetos de desejo, como eletricidade, tevês a cabo e outros tipos de modernidades. Os gatos de água são um avanço paradoxal, tanto pelo ineditismo, como pela proverbial falta de afinidade entre esses felinos e a hoje tão escassa H2O. Viver é aprender. Fui educado sob o paradigma que gatos e água não combinam. Devo rever minhas crenças Por outro lado, o cenário de furto de água dá um sentido mais objetivo para o fato de que as caixas d’agua possuem um ladrão.

O processo de rever minha visão de mundo não termina nos felinos, mas adentra em um campo no qual os patologistas como eu trafegam com desenvoltura: a morte. A despeito da minha experiência com autópsias, nunca tive a oportunidade de examinar um volume morto. O esvaziamento dos reservatórios revelou a existência não de um, mas sim de quatro volumes mortos.

O último deles – o quarto – foi descoberto logo abaixo do terceiro. Deduzo que há um serial killer de águas, que, impiedoso, elimina volumes com frieza implacável. Acho que devemos investigar os restos mortais destes volumes, executando um minucioso exame de corpo de delito (ou seria delitro?).

Devemos agir com competência e precisão. O cenário atual não permite erros. Não teremos o direito de dizer que a investigação foi por água abaixo e, muito menos, que atingimos o fundo do poço. Temo que daremos todos nós com os burros n' água. Caso esses sombrios vaticínios se façam realidade, ouso dizer que não o será por falta de burros.

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