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Estatuto da Metrópole pode corrigir omissões históricas de planejamento

Especial para o UOL

01/03/2015 06h00

Em texto publicado na sua coluna da Folha, no dia 1º de fevereiro, o economista Henrique Meirelles narrou a perplexidade de uma autoridade europeia diante do desdém do Brasil com metas de longo prazo. A nota seria trivial, não fosse o fato de se referir a um acontecimento de décadas atrás.

Infelizmente, o descuido com o planejamento não é exclusivo da política econômica. Ele se revela também num tema-chave da agenda de debates públicos: a questão urbana.

O fenômeno da urbanização já é uma realidade desde a década de 50 do século 20. Dados da ONU apontam que 90% dos brasileiros morarão em cidades em 2020. O número hoje é próximo a 87%.

Entretanto, o tema só foi decisivamente enfrentado a partir da Constituição de 1988. Antes, predominava uma perspectiva focada nos códigos de obras e rotinas municipais e na tributação, e num caráter quase absoluto do direito de propriedade.

Da Constituição à entrada em vigor do Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/01), que regulamentou seus dois artigos referentes à ordem urbana (182 e 183), transcorreram longos 13 anos. Deste diploma ao Estatuto da Metrópole (Lei n. 13.089/15), foram mais 14 anos.

A dinâmica do espaço urbano não parou para esperar. O resultado foi a consolidação de uma série de irregularidades, na forma de problemas habitacionais, fundiários, ambientais e de mobilidade, que o surgimento de grandes áreas metropolitanas só agravou. Todos perdem: a qualidade de vida dos habitantes, a atividade econômica, a justiça social.

Há enorme expectativa em relação ao Estatuto da Metrópole, que se depara com o desafio de lançar luzes sobre a dimensão do planejamento, expressão que se repete dez vezes em seu texto, sem deixar de enfrentar o passivo consolidado. A correção de omissões históricas necessita de sua completa incorporação pelo poder público.

Fronteiras artificiais

O estatuto parte, afinal, de um dado irrefutável: os limites geográficos entre as cidades são fronteiras artificiais. Basta lembrar, por exemplo, que mais de 150 cidades paulistas exportam, formalmente, seu lixo, e, informalmente, esgoto, poluição atmosférica e trânsito.

A nova lei consagra a gestão e execução das funções públicas de interesse comum – ou seja, aquilo que deve ser pensado conjuntamente pelos municípios partícipes. Isso pode ser feito, por exemplo, através de planos de desenvolvimento integrados, operações urbanas consorciadas, convênios de cooperação, além da repartição de competências - quem deve fazer o que - e de responsabilidades para o suporte e financiamento dessas iniciativas.

Onde isso se aplica? Em questões como a destinação dos resíduos sólidos, as políticas de habitação, mobilidade e saneamento e meio ambiente, que deixam de serem assuntos isolados no cotidiano das cidades. Agrupadas em torno da governança interfederativa, devem observar o predomínio do interesse comum sobre o local. Bom será equacionar essa fórmula de modo a contemplar as assimetrias de desenvolvimento dos municípios integrantes.

Hoje, municípios menos desenvolvidos tendem a sofrer mais. A concentração da atividade econômica nos centros urbanos maiores os transforma em cidades-dormitório. Isso significa mais deslocamentos e, portanto, pressão sobre os sistemas de transporte coletivo, além de mais trânsito. A busca por moradia mais barata também representa um ônus considerável para as prefeituras menores, que naturalmente arrecadam menos.

É uma situação que não condiz com a complexidade dos problemas das cidades brasileiras. Responder a eles não passa por políticas públicas isoladas, desconectadas de uma solução planejada conjuntamente. O gasto de dinheiro público é maior e as soluções sempre mais precárias e ineficazes.

O desafio não para por aí. É preciso garantir a efetividade do Estatuto da Metrópole. Não se pode esquecer que para muitas cidades brasileiras diversos dispositivos do Estatuto da Cidade, anterior à nova lei, permanecem como ilustres desconhecidos.

É o caso do IPTU progressivo, que se aplica aos imóveis que descumprem sua função social, da contribuição de melhoria, que é uma forma de tributar a valorização de imóveis decorrente de obras públicas (como, por exemplo, uma estação de metrô) e da gestão democrática na formulação de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano. Por desinteresse político e por desconhecimento da sociedade, ainda não foram colocados inteiramente em prática.

Os gestores públicos devem se engajar nessa causa. Para além das divergências políticas e ideológicas, as questões metropolitanas merecem tratamento conjunto dos três entes da federação: União, Estados e municípios. É preciso vê-las como políticas de Estado. Um não conseguirá dar conta dessa frente sem o apoio dos demais. E uma vez definidos os papeis específicos de cada um, será possível cobrá-los individualmente.

Defender a nova lei é defender uma melhora sem precedentes no debate público e nos mecanismos de controle da atuação estatal. Cabe a toda a sociedade lutar pela implementação integral de seus dispositivos.

Esse é o espírito do Estatuto da Metrópole. Assim como o Estatuto da Cidade, faz um chamado à sociedade civil organizada, para exercer o controle social das decisões que envolvam a “organização, do planejamento e da execução de funções públicas de interesse comum”. Tudo de modo a atribuir um protagonismo à cidadania, que deve ser parte do processo decisório, e não somente expectadora.

Eis um ponto de ordem civilizatória: ao envolver a sociedade na discussão e definição das políticas públicas urbanas, oferece um incremento de responsabilidade que só aprimora o sentido da democracia e permite, enfim, vislumbrar um futuro com cidades justas, democráticas e sustentáveis.

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