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Longe de ser obsoleta, Lei Rouanet democratiza apoio à cultura com financiamento coletivo

Especial para o UOL

15/05/2015 06h00

Quando Juca Ferreira assumiu o cargo de Ministro da Cultura em fevereiro deste ano, um dos principais temas em seus discursos foi a Lei de Incentivo à Cultura, mais conhecida como Lei Rouanet. O Ministro criticou a Lei, dizendo que era obsoleta e pouco democrática.

Seria obsoleta por ter sido aprovada há mais de vinte anos e tendo sido, desde então, pouco remodelada em vista às tendências de mercado. E pouco democrática porque, como ele próprio diz, distorce a parceria entre Estado e iniciativa privada ao conceder o incentivo a grandes empresas que acabam apoiando apenas projetos de alta visibilidade nos eixos Rio-São Paulo que melhor representam sua marca.

Com isso, segundo o ministro, a produção artística em outras regiões do Brasil é pouco estimulada e projetos culturais de “artistas inovadores” e da “camada pobre” acabam não “interessando” as empresas patrocinadoras.

Há de fato uma concentração de grandes produções no eixo Rio-São Paulo e no dia a dia do financiamento de projetos culturais, as grandes produtoras, com seus mega shows e espetáculos, acabam absorvendo grande parte da verba de patrocínio das empresas, que deixam de usar sua verba de marketing por causa do incentivo concedido. Assim fica mais difícil viabilizar projetos menores que, de acordo com as empresas, não dariam visibilidade às suas marcas.

A lei, como é utilizada hoje, pode ser injusta e sem dúvida precisa ser reformulada. Mas o governo não deve modificá-la de modo a prejudicar os belos projetos culturais de grande porte que estão tendo sucesso no país, que têm alta visibilidade e para os quais claramente há público.

Como diz o sábio ditado popular, em time que está ganhando não se mexe. O que deveria acontecer é uma reformulação da lei de modo que ela continue apoiando os setores culturais que estão fortes e simultaneamente estimule, com novas medidas de fomento e apoio, os demais segmentos culturais independentes para que também cresçam e adquiram seu nicho merecido no mercado.

Talvez a solução de democratização da Lei Rouanet esteja na própria Lei Rouanet. Pensemos no contexto histórico-político do qual surgiu a lei: início dos anos 90, o Brasil havia recém saído de uma ditadura miliar de mais de vinte anos, estava se recuperando de uma crise econômica, e os cidadãos e o mercado tinham recém recuperado sua livre articulação. A lei de incentivo em vigor (de 1986), estava gerando problemas, não havia pré-aprovação de orçamento e a não era necessário que o produto cultural tivesse circulação pública. Ou seja, o dinheiro era liberado sem obrigações de acesso para a público.

A Lei Rouanet passou a legitimar os projetos, através de orçamentos pré-aprovados, e instituiu a obrigatoriedade de acesso público e cotas de ingressos a preços populares. O apoio financeiro a projetos foi regulamentado pelo Pronac (Programa Nacional de Apoio à Cultura ), que além de criar o FNC (Fundo Nacional de Cultura) também tornou possível o incentivo a projetos culturais por meio de renúncia fiscal não só por empresas, o que a Lei anterior já permitia, mas por pessoas físicas também.

Essa foi a grande inovação da Lei Rouanet na época, democratizando o apoio à cultura por financiamento coletivo, permitindo que cidadãos que pagassem impostos pudessem abater até 6% de seu imposto devido e doá-lo para projetos culturais pré-aprovados pelo Ministério. Essa abertura a cidadãos não pôde ser bem implementada até recentemente.

Hoje vivemos numa era em que Twitter e Facebook têm o poder de derrubar governos e organizar manifestações. Não seria agora o momento de aproveitar o que há de melhor na tecnologia para ampliar o acesso de cidadãos ao financiamento de projetos de sua escolha?

Se o mercado cultural hoje é financiado e mantido pelo patrocínio das empresas via renúncia fiscal (só em 2014, empresas destinaram R$ 1.3 bilhões para projetos culturais, de um total aprovado de R$5.7 bilhões), imagine se pudéssemos agregar a esse valor a soma dos 6% de 11 milhões de brasileiros que declaram pelo formulário completo do IR. Atualmente do total arrecadado, 99% deriva de empresas e apenas 1 % de pessoas físicas.

São vários os motivos desse baixo percentual de pessoas físicas. Não há consciência entre produtores culturais e o grande público da existência desse recurso. Também não há ainda um mecanismo digital que automatize a arquitetura das leis de incentivo e seus processos e que facilite o apoio de pessoas físicas via incentivo. Eu mesma estou elaborando um site de financiamento coletivo com outros colaboradores que tentará resolver essa dificuldade, pois o processo atual é manual, burocrático e demorado.

Apesar do conceito de financiamento coletivo já estar ganhando força no Brasil, as doações ainda ocorrem de forma direta (sem incentivo fiscal) e os projetos são relativamente pequenos. Mas o setor deve ser levado em conta, pois quanto maior for a participação do coletivo e melhor for a comunicação entre o produtor cultural e seu público, maior será o apoio estendido a projetos culturais.

Esse apoio pode se dar também fora do eixo Rio-São Paulo, distribuindo assim o financiamento por múltiplas regiões geográficas. E como a decisão de apoio financeiro depende do coletivo, os projetos são viabilizados de acordo com a vontade do público. Nesse cenário, não é só o governo nem são as grandes empresas que decidem quais projetos são financiados, e sim o cidadão, em ação coletiva.  

A Lei Rouanet, longe de estar obsoleta, abriu o caminho para ações cívicas de colaboração coletiva. Precisamos usar a tecnologia de maneira responsável para que essas ações ganhem força e possam derrubar barreiras geográficas e socioeconômicas, permitindo que qualquer criador cultural, em qualquer lugar do Brasil, de qualquer origem social consiga viabilizar seu projeto, encontrando via internet o seu público apoiador consciente e participativo, criando assim seu nicho no mercado. Não há nada mais democrático que isso. 

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