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Falta de punição incentiva inadimplência no MCMV

Especial para o UOL

07/07/2015 06h00

Um dos maiores desafios das próximas décadas é propiciar condições adequadas de moradia para um enorme contingente de excluídos. Trata-se de uma questão cuja escala é mundial, afetando, sobretudo, as grandes regiões metropolitanas de inúmeros países, inclusive aqueles desenvolvidos.

Na cidade de Nova York, por exemplo, a escalada de preços dos imóveis tem acentuado de tal forma a desigualdade no acesso à moradia que um dos programas sociais mais importantes da prefeitura local relaciona-se à construção de residências cujo aluguel/prestação sejam compatíveis com o orçamento da população de baixa renda (em inglês, "affordable housing").

De Paris a Hong Kong, passando por Londres, os desafios são semelhantes. Obviamente, a realidade dos países mais pobres é pior, tanto pela maior escala de excluídos quanto pela menor capacidade de mobilizar recursos para solução dos problemas.

No caso brasileiro, o programa Minha Casa Minha Vida (MCMV), criado em 2009, desempenhou papel importante no combate ao déficit habitacional, hoje estimado em cerca de 5,2 milhões de moradias. O maior mérito do programa foi lograr êxito em atingir a parcela mais pobre da população.

De fato, a população que ganha entre zero e três salários mínimos constitui 80% do deficit habitacional no Brasil. Enfrentar tal desafio foi a grande inflexão do MCMV como política pública nacional de habitação.

Entretanto, passados seis anos, é evidente que o programa precisa ser aprimorado de diversas maneiras, chamando particular atenção a ausência de uma tecnologia de crédito adequada na faixa 1 do programa, na qual a renda  familiar máxima é de R$ 1.600,00.

Conforme pesquisa recente, a faixa 1 do MCMV chama a atenção por dois fatos aparentemente contraditórios: a prestação baixa e a inadimplência elevada. Tipicamente, o valor da prestação é R$ 25 e o prazo de pagamento é de dez anos.

Nessas condições, o subsídio corresponde a aproximadamente 95% do valor da moradia. A inadimplência, por sua vez, atinge mais de 20% dos contratos, ou seja, um número dez vezes maior do que o observado em operações de crédito habitacional, inclusive nas outras faixas do próprio MCMV.

Na faixa 1 há frágeis mecanismos de análise "ex-ante", ou seja, aqueles capazes de selecionar adequadamente os beneficiários e enquadrá-los em valores de prestação sensíveis à capacidade de pagamento.

Há forte incentivo para que a maior parte das pessoas pague prestação próxima a R$ 25, valor mínimo exigido (o valor máximo é R$ 80, ou seja, 5% do teto da renda familiar de R$ 1600). As maiores preocupações têm sido a produção e entrega do imóvel. Após isso, há poucos instrumentos de acompanhamento e cobrança.

Diante das características acima, acaba ocorrendo um problema bastante conhecido na literatura sobre crédito: o risco moral. Apesar do nome, trata-se de um fenômeno que pode ser entendido unicamente pelo lado econômico. As pessoas alteram seu comportamento conforme a estrutura de incentivos vigente.

Opinião - Gráfico FGV - Lauro Gonzalez/FGV - Lauro Gonzalez/FGV
Inadimplência no MCMV (em %, contratos operados pela Caixa) e no SFH
Imagem: Lauro Gonzalez/FGV

No caso do MCMV, há baixo incentivo para pagamento das prestações. Isso decorre tanto da falta de sanções/punições à inadimplência quanto da sinalização equivocada contida em uma prestação muito baixa, ou seja, o que deveria configurar uma operação de crédito acaba sendo percebido por muitos como doação.

As tecnologias ligadas ao microcrédito poderiam aprimorar o funcionamento no programa. De fato, na faixa 1, o objetivo é financiar imóveis para uma parcela da população geralmente excluída do sistema financeiro tradicional e sobre a qual há poucas informações ou histórico de crédito.

A ausência de informações e a falta de garantias são alguns dos obstáculos que precisam ser transpostos para que um programa de crédito seja sustentável. Tal quadro remete diretamente às inovações trazidas pelo microcrédito.

Diversas experiências práticas, inclusive no Brasil, já incorporam algumas dessas inovações, que se baseiam em elementos das chamadas “finanças da proximidade” de forma a capturar a dinâmica da vida financeira dos beneficiários mais pobres.

Em termos concretos, a utilização de agentes de crédito, profissional que vai até as pessoas e tem ligação concreta com sua realidade, poderia contribuir para mitigar o risco de crédito e adequar a prestação à capacidade de pagamento.

Isso pode ser conjugado com melhor o uso de informações e bancos de dados disponíveis, como o Cadin e o Cadastro Único, que podem ser complementados por informações locais, geralmente informais, sobre rotinas e perfis das famílias.

Em tempos de ajuste fiscal, é imprescindível aprimorar o MCMV de forma a garantir sua sustentabilidade no longo prazo. Maior eficiência através de prestações sensíveis à capacidade de pagamento e menores níveis de inadimplência significam recursos que podem ampliar o alcance do programa e reduzir, mais rapidamente, a falta de acesso à moradia digna.

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