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Descriminalizar porte de drogas não incentiva ou libera o consumo

Especial para o UOL

19/08/2015 06h00

Nesta semana, o STF decidirá o Recurso Extraordinário nº 635.659, que versa sobre a descriminalização do porte de drogas ilícitas para consumo próprio.

É importante esclarecer que o recurso não tem por objetivo a legalização ou a liberação geral do uso de drogas, como tem sido veiculado na tentativa de distorcer o debate público. São medidas que jamais poderiam ser confundidas. Descriminalizar implica deixar de considerar o porte de drogas para consumo próprio como crime.

Isso não significa que o uso de drogas será liberado ou incentivado, afinal, mesmo em um ambiente de descriminalização, pode haver forte intervenção estatal no sentido de desestimular o consumo mediante práticas mais eficazes e menos onerosas, como encaminhamentos para a rede de atenção aos usuários e ao sistema de saúde.

O principal fundamento jurídico para a descriminalização é o de que um comportamento individual que não causa danos a outras pessoas não pode ser alvo do direito penal, pois se situa em uma esfera particular, protegida da ingerência estatal.

Além disso, parte da compreensão de que o usuário não deve receber o estigma de criminoso, mas sim atendimento no âmbito da saúde.

Por esses motivos, a descriminalização já foi adotada por todos os países da América Latina (exceto Guianas e Suriname), grande parte dos países europeus e é recomendada pela Organização Mundial da Saúde.

Os EUA, país que deflagrou a guerra internacional às drogas, já admitiram o fracasso desse modelo ao constatar que a repressão ao usuário não diminuiu o uso de drogas e gerou custos humanos e financeiros inestimáveis. Essa política criminal mata, corrompe e flagela mais do que a droga em si.

As experiências internacionais demonstraram que o uso de drogas ilícitas não aumentou em razão de sua descriminalização, havendo forte tendência de queda.

Por sua vez, se a demanda cai, o tráfico de drogas e todos os aspectos reflexos, como a violência imposta pelo controle de territórios, também tendem a diminuir. Algumas dúvidas, todavia, podem surgir, e é preciso esclarecê-las para afastar mitos e tornar o debate racional.

E se o indivíduo usar a droga e cometer um crime? A descriminalização do porte de drogas não afeta os crimes que possam causar danos a terceiros. O indivíduo continuará respondendo por todos os crimes causados à vida, à propriedade e crimes de trânsito, por exemplo.

No pitoresco exemplo do indivíduo que resolve pilotar aeronave após consumir maconha, responderá pelo crime de “conduzir embarcação ou aeronave após o consumo de drogas, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem”, previsto no art. 39, da Lei nº 11.343/06.

A descriminalização onerará o SUS? A criminalização dificulta o acesso do usuário ao sistema de saúde, além de possivelmente inseri-lo em situação de risco, sujeitando-o a uma série de doenças (HIV, hepatite, tuberculose).

A partir da descriminalização, viabilizando a devida assistência médica àquele, o gasto será destinado à causa e não para a consequência. Além disso, o dinheiro do contribuinte não será desperdiçado no aparato policial, judiciário e penitenciário acionados pelo atual modelo.

E se o traficante dividir a droga para ser enquadrado como usuário? A pergunta subestima o poder da investigação criminal, limitando-a a ronda de rua. Havendo indícios de que um indivíduo porta pequena quantidade de drogas para se esquivar da perseguição, a polícia possui meios legais para retardar o flagrante e descobrir se é caso de tráfico ou uso, de onde vem tal droga, quem financiou a medida e para onde vai o dinheiro decorrente desta.

Uma investigação séria é mais eficaz que a simples prisão em flagrante daquele que vende a droga na rua, mera “ponta do iceberg” da estrutura delitiva e que provavelmente será substituído logo após sua prisão.

A polícia não poderá agir quando verificar uma cena de uso (“cracolândias”)? Este tipo de atuação apenas dispersa os usuários, que se transferem para outro local. Desperdiça-se o efetivo policial em uma operação inútil, colocando, inclusive, o policial em condições insalubres.

A situação deve ser efetivamente enfrentada por agentes de saúde e assistentes sociais, que ofereçam aos usuários o suporte necessário para superar o uso problemático de drogas, encaminhando-os para os serviços de saúde especializados (Caps-AD).

Enfim, toda política pública deve passar por um teste de eficiência e o modelo atual há muito tempo se mostrou ineficaz para diminuir o consumo de drogas, além de estigmatizar e aumentar o sofrimento do usuário. É chegado o momento de o Brasil optar pelo caminho racional, humano e menos dispendioso para o enfrentamento da questão.

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