Somos todos bandidos?
A fama internacional do brasileiro cordial e hospitaleiro já pode ser oficialmente substituída pela imagem do povo que promove e sofre com a violência. Segundo os últimos levantamentos do Datafolha e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o povo do país campeão mundial no futebol e nos homicídios apresenta distanciamento perigoso dos princípios cívicos e morais que sustentam o estado de direito, ao mesmo tempo que é vítima desta mesma mentalidade que alimenta a violência e corrói as bases da justiça e da cidadania.
Segundo pesquisa divulgada na última segunda-feira, 50% dos brasileiros em todas as regiões do país acreditam que “bandido bom é bandido morto”. Ainda que a outra metade da população (45%) defenda a atuação do sistema de justiça em contraponto ao já notório bordão, é absolutamente preocupante que tantos brasileiros apoiem, na prática, a aplicação da pena de morte por agentes de segurança.
A figura do “bandido” como a encarnação do mal, do bode expiatório, é altamente nociva para a coletividade. Afinal, quem define quem é “bandido” e, assim, merece morrer? Nessa lógica, entregamos essa decisão aos justiceiros do Flamengo que acorrentaram suposto assaltante, nu, à um poste. Ou paralisamos, coniventes, diante das chacinas de Barueri e Osasco, que vitimaram 18 pessoas em poucas horas. Eram todos bandidos? Segundo quem? E mesmo se as vítimas tivessem passagens criminais, não tinham também o direito à defesa, à presunção de inocência?
Ainda que a pesquisa mostre que o enraizamento desse pensamento não encontra refúgio em um grupo etário ou uma classe social específica, é preciso lembrar que a violência no Brasil possui sim um grupo de vítimas preferencial: jovens, pretos e habitantes das periferias das grandes cidades, alvo este que mesmo as balas perdidas insistem em encontrar.
A ideia de matar o bandido, radicada na consciência de boa parte da população brasileira, é sintoma inequívoco da epidemia da violência em que vivemos. O que não percebemos ao reproduzir essa violência difusa é justamente sua alta capacidade de nos transformar no próximo alvo.
Ao alimentar a lógica de guerra ao invés de investir em políticas públicas efetivas de segurança, como estimula a afirmação “bandido bom é bandido morto”, fomentamos o confronto entre as forças de segurança e a criminalidade –aumentando o número de mortos pelas polícias (3.022, em 2014), mas também contribuindo para um número inaceitável de policiais mortos (398 no mesmo período).
Vítima direta dessa lógica, o cidadão brasileiro sofre com o medo de ser vítima deste tiroteio. Segundo pesquisa recente, também do Datafolha, em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 81% dos brasileiros tem medo de ser assassinado, 91% teme sofrer violência por parte de criminosos e entre 53% e 62% têm receio de sofrer violência policial. Ou seja, ao mesmo tempo que metade da população brasileira acredita que “bandido bom é o bandido morto”, um número maior de pessoas receia ser confundido com “bandido”.
O perigo de uma população marcada pela violência e cansada da impunidade é a produção de juízos extremos, que atentam à própria base da sociedade. Afinal, o medo é inimigo da racionalidade. Entretanto, não podemos deixar que os fracassos em nosso sistema de justiça e políticas de segurança pública causem a deformação de princípios morais como a polêmica frase sugere.
De maneira simplificada, em qualquer sociedade com instituições democráticas consolidadas, “bandido bom” é aquele identificado por uma polícia eficiente que previne e investiga o crime, seguido de um Ministério Público que, satisfeito com as provas reunidas pela polícia, oferece uma denúncia; um juiz que inicia a ação penal e, com base em evidências, condena o réu à uma pena adequada ao delito cometido –ou o absolve se não tiver convicção de sua autoria ou provas de materialidade.
O diabo é que esse processo todo não dá bordão nem para programa policial na TV, muito menos para candidato nas próximas eleições. Sem mudanças de rota que envolvam, entre outras medidas, o rompimento com as políticas de segurança tradicionais –que favorecem a repressão em detrimento de ações preventivas e integradas a outros serviços públicos–, seguimos com a barbárie.
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