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Repressão contra religiões afro-brasileiras parece ter ficado no passado

Especial para o UOL

11/10/2015 06h00

Entre a década de 1930 e o ano de 2015, importantes mudanças ocorreram na sociedade brasileira e que só são compreensíveis se nos voltarmos à história pregressa do país. A partir de 1937, vivíamos sob a ditadura do Estado Novo (1937-1945), ao passo que hoje vivemos em uma democracia.

Contrariando a primeira Constituição republicana, de 1891, e, mais tarde, a de 1934, no período da ditadura Vargas impôs-se o catolicismo apostólico romano como religião oficial. Em 2015, mesmo contra a vontade de alguns agentes e de grupos de interesse, o Estado é laico e garante a liberdade de crença e culto, do mesmo modo que não obriga o ensino religioso na rede de ensino. A Constituição de 1988 (art. 19) veda, por exemplo, as alianças ou a relação de dependência entre o Estado e qualquer religião.

Em 1938, Mário de Andrade, o primeiro diretor do Departamento de Cultura, com o apoio de Oneyda Alvarenga e Dina Lévi-Strauss, empenhou-se na realização da ousada Missão de Pesquisas Folclóricas. A equipe da missão era formada pelo engenheiro-arquiteto Luís Saia, coordenador-chefe, por Martin Braunwieser, músico e maestro, por Benedito Pacheco, técnico de gravação, e por Antonio Ladeira, auxiliar geral.

O grupo viajou para o Norte e para o Nordeste em busca da alma do povo brasileiro cujas manifestações profundas estavam em perigo de extinção. O objetivo era que São Paulo constituísse um bom acervo de registros audiovisuais e escritos, além de exemplares de objetos característicos da cultura dessas regiões, de sua música e de seu folclore.

Tratava-se, no plano educativo, de possibilitar às futuras gerações o acesso ao conhecimento desse Brasil a partir dos documentos coletados e integrados à Discoteca Pública Municipal –hoje, Discoteca Oneyda Alvarenga, sediada no Centro Cultural São Paulo– como coleção permanente. Em 13 de fevereiro, a equipe desembarcou em Recife, um dia depois da invasão, do saque e do fechamento de 23 terreiros de Xangô pela polícia local.

Nessas ações repressivas –bastante comuns na passagem do século 19 para o 20– a polícia confiscava grande quantidade de objetos sagrados, criminalizando oficialmente tais práticas. Para o grupo da missão, a situação social e política em 1938 era péssima, pois atrapalhava as atividades de coleta das informações que buscavam documentar.

Em cada uma das localidades que chegavam, Luís Saia negociava com as autoridades policiais a autorização para frequentar as sessões do que, na época, a imprensa classificou como “baixo espiritismo” e “baixa magia”.

Quando chegaram a Recife, o delegado local João Inácio Ribeiro Roma, atento aos interesses do grupo no folclore, ofereceu 519 peças apreendidas nos terreiros ao chefe da Missão de Pesquisas Folclóricas. “Coisa de vasto valor”, afirma Saia em carta a Mário, no dia 16 de fevereiro do mesmo ano.

O conjunto faria parte do tão sonhado, mas jamais realizado Museu Folclórico da Discoteca Pública, um dentre os vários projetos educacionais do Departamento de Cultura.

Passados os anos, a repressão, o saque e o vandalismo policial contra as religiões afro-brasileiras parecem ter ficado no passado. O surgimento de grupos religiosos conservadores vem ganhando força desde meados dos anos 1990 –lembremo-nos do famoso episódio do “chute na santa”, quando um pastor chutou a imagem de Nossa Senhora Aparecida–, acumulando poder nos meios de comunicação e na esfera política.

Porém, agora enfrentam a resistência ecumênica -que agrega inclusive evangélicos e católicos aliados a setores progressistas-, que luta em favor da liberdade de crença, de não crença e pela paz entre as diferentes religiões.

Esse quadro indica que estamos em um país mais democrático e que leis como a 11.645/08, que torna obrigatório o ensino de história afro-brasileira e indígena, fazem muita diferença ao nos possibilitar compreender -e quem sabe até nos orgulhar-, as histórias de resistência e de desobediência civil que populações com essas origens vêm há séculos se mobilizando para exercer o direito de existir e de se reproduzir.

Como sabidamente nos ensina a Yalorixá/Mãe Stella de Oxóssi, em seu pequeno livro Provérbios/OWÉ, “a amar e a rezar, ninguém pode obrigar”. Conhecer o passado e valorizar a luta de tanta gente submetida a leis repressivas são fundamentais para reagirmos à captura dos direitos civis garantidos pela Constituição.

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