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Com Levy, saímos da âncora cambial para a âncora ministerial

Especial para o UOL

19/10/2015 06h00

O futuro é uma projeção que se sustenta em tudo aquilo que constitui a experiência do presente, bem como nas interpretações que se dá à coleção de registros da memória ou da história. Hoje, Dilma Rousseff não demonstra convicção sobre os méritos da estabilidade monetária e da responsabilidade fiscal. Ontem, quando a política econômica não demonstrou convicção sobre os méritos da estabilidade monetária e da responsabilidade fiscal houve baixo crescimento e descontrole inflacionário. O que projetar para o futuro se não desemprego e o risco de ruptura da estabilidade monetária?

A inflação é uma variável nominal do sistema econômico. Representa muitas dimensões a um só tempo: o valor relativo da moeda; o valor relativo do trabalho e o padrão comparativo para outras variáveis da economia. De fato, a taxa de inflação simultaneamente conduz e é conduzida pela da taxa de juros nominal, taxa nominal de salários, taxa nominal de câmbio e pela taxa de expansão dos agregados monetários. As expectativas sobre o comportamento da taxa de inflação no futuro traduzem o consenso sobre a (ins)estabilidade macroeconômica.

Como o futuro é onde habitam todos os erros, frustrações e seus opostos, a expectativa sobre a possível posição relativa de um agente econômico (seus salários reais, seus preços relativos etc.) sempre é incompleta, fragmentada e volátil. Dessa forma, impõe-se à política econômica a definição de uma referência clara sobre a dinâmica futura da taxa de inflação. Requisita-se que as flutuações das expectativas se recolham a uma diminuta amplitude. Que sejam guiadas por uma referência, por uma âncora.

Neste momento, a economia brasileira opera sob a influência de inusitada âncora: a figura do ministro da Fazenda. Inaugura-se, em Pindorama, inédito padrão de política monetária: âncora ministerial. Como toda inovação brasiliana em matéria de economia sua compreensão não é permitida à principiantes. De fato, sua funcionalidade aparece quando Mercadante convoca coletiva de imprensa para anunciar: “Evidente que [Levy] fica. Ele tem compromisso com o Brasil, tem compromisso com esse projeto [...]”.

A âncora ministerial, contudo, tem suas limitações. Dado que tem cabeça e vontade próprias, esse curioso instrumento de política monetária, cujo gabinete situa-se no Ministério da Fazenda, desdobra-se em um dilema para a economia brasileira. Se o governo decidir levar a sério a âncora ministerial, promoverá o ajuste fiscal. O resultado: retomada do crescimento e estabilização das variáveis nominais. Não se trata de política econômica para principiantes: trata-se de política econômica em um conto de Cortázar. Nesse momento, a imagem refletida indica o resultado real.

Caso a presidente opte pela ideia de que o ajuste “não significa nada”, sem ministro, sem âncora, sem referência, sem governo, o Brasil retornaria a meados dos anos 80. Como farsa que já se realizou trinta anos atrás, o país novamente poderia se ver “governado” pelo mesmo partido daqueles tempos: haveria um recrudescimento da inflação, o real sofreria constantes ataques especulativos e a recessão seria mais severa, tornando-se mais distante a perspectiva da retomada do crescimento econômico. Acrescente-se a convivência velada com a indexação, medida exata da memória inflacionária e, portanto, da suspeita de que o conflito distributivo nunca deixou de existir.

Estabilidade monetária

A âncora ministerial é de longe a mais inovadora medida de estabilização das variáveis nominais na história recente da economia brasileira. Por quatro anos após meados de 1994 os agentes repousaram suas expectativas sobre o futuro na taxa nominal de câmbio (acrescida da necessária abertura ao comércio internacional). Em meados de 1999, resultados primários superavitários tornaram-se a âncora nominal em um contexto no qual o regime de metas operava de forma muito ineficaz: entre 1999 e 2002 a taxa de inflação esteve no intervalo das bandas adotadas pelo regime de metas em apenas um quarto do tempo.

Duas ou três fortes âncoras em funcionamento simultâneo levaram as taxas de inflação correntes e esperadas para restritos intervalos após 2004. Regime fiscal crível (superavit primários, respeito à LRF, estabilidade da relação dívida/PIB); câmbio nominal em trajetória de apreciação e, por fim, claríssima convicção da autoridade monetária com a estabilidade monetária. Naquele momento perdeu-se a oportunidade de se instituir metas reduzidíssimas para a taxa de inflação. Ao contrário, optou-se por mais uma manifestação do inflacionismo no Brasil: as metas do regime foram elevadas a 4,5%.

Hoje, a economia brasileira opera sem nenhuma dessas âncoras: as contas da União estão sub judice no Tribunal de Contas da União; não há clareza sobre a convicção da presidente com relação à trajetória do resultado primário; a taxa nominal de câmbio passa por um processo de desvalorização que, de resto, se registrou em 1999, 2002 e 2008; por fim, a manutenção da Selic na última reunião do Copom, em meio à deterioração do crescimento econômico, é apenas um passo na restituição da credibilidade da autoridade monetária degastada a partir de meados de 2011. 

Sem registros históricos exaustivos e sem referências na literatura especializada, torna-se difícil proceder ao prognóstico da âncora ministerial: é mais provável manter o ministro ou realizar o déficit primário previsto para 2016? Ao sustentar a parca estabilidade macroeconômica sobre Levy, Dilma já deixa antever seu registro na história econômica brasileira como a presidente que levou à ruptura da estabilidade monetária.

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