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Foro privilegiado cria castas em pleno regime republicano

Especial para o UOL

14/12/2015 06h00

No Brasil, autoridades, diferentemente de cidadãos comuns, são processadas criminalmente perante um tribunal. A isto se dá o nome de foro privilegiado, também conhecido como foro por prerrogativa de função. A Operação Lava Jato vem demonstrando na prática como isto funciona: enquanto a maioria dos investigados está sendo processada em Curitiba perante o juiz Sergio Moro, os deputados e senadores envolvidos estão submetidos diretamente ao STF (Supremo Tribunal Federal).

Quando nos comparamos com outros países, é possível perceber que não há uniformidade. É comum que as legislações adotem regras de foro excepcional para determinados cargos, mas nada que se compare à amplitude que o Brasil adotou. Hoje são mais de 20 mil pessoas que detêm esta prerrogativa nos diversos tribunais do país. Além de presidente, governadores, prefeitos, deputados, senadores, membros do Judiciário e do Ministério Público, há ministros, membros da defensoria pública, advocacia pública e cargos equiparados aos de ministros de Estado. As constituições estaduais ainda têm liberdade para ampliar os beneficiários e abranger vereadores e secretários municipais.

As ações –não penais– de improbidade administrativa, que nasceram como alternativa mais simplificada de responsabilização de agentes públicos, mesmo depois de mais de vinte anos de vigência, ainda enfrentam discussões sobre a aplicação ou não de foro privilegiado e, até hoje, o STF não pacificou a questão.

São basicamente duas as justificativas tradicionais para o foro privilegiado, repetidas acriticamente em manuais de direito. Primeiro, a pretensa necessidade de se preservar alguns cargos que, por sua relevância, mereceriam um tratamento especial. Deixá-los à mercê de processos comuns poderia ferir a credibilidade do cargo e comprometer a imagem das instituições envolvidas.

A segunda justificativa leva em conta a influência que o cargo em questão pode ter na isenção dos julgamentos. Parte-se do pressuposto que um colegiado de juízes mais experientes julgará com mais independência que um juiz de primeiro grau que, também presumidamente, estaria mais sujeito a pressões.

Mas o que um defensor público, um membro do MP, um ministro de Estado e um senador têm em comum? Todas as justificativas são mesmo aplicáveis a todos eles? Mesmo se levarmos a sério as preocupações por trás do foro, ele é amplo demais no Brasil. No fundo, o que une as pessoas nesses cargos é a ideia arraigada no Brasil de que são “autoridades”. Com isso, o sistema pode ter criado uma casta em pleno regime republicano.

O número extravagante de mais de 20 mil detentores de foro evidencia que o que era para ser excepcional deixou de ser. A amplitude do instituto faz parecer que qualquer autoridade no Brasil está sujeita a uma sanha persecutória sem limites, o que obrigaria o sistema a criar uma rede de proteção especial para estas pessoas. Nada mais irreal. A exposição dos homens públicos é da natureza do jogo democrático. O julgamento da sociedade sobre instituições e pessoas públicas não depende diretamente de onde estão sendo processados criminalmente. Pior: a separação de foro compromete a imagem das instituições perante a opinião pública, que tende a enxergar o privilégio como garantia de impunidade.

Mais ainda, o foro assim ampliado deixa transparecer que somos um país que não acredita em seus juízes. Imaginar que membros de um tribunal não estão sujeitos a pressões políticas é desconhecer por completo as relações de poder que regem estas instituições. Pressões e tentativas de influenciar julgamentos existirão sempre, e a recente prisão do senador Delcídio do Amaral (PT-MS) deixou isto evidente. Juízes, desembargadores e ministros podem ser mais ou menos vulneráveis a elas.

O que gera a independência da magistratura é o sistema constitucional de prerrogativas. E o que garante esta independência são a transparência e a publicidade dos julgamentos. Erros e injustiças devem ser corrigidos pela via recursal dos processos de cidadãos comuns.

Ocorre que aí, nesta via intrincada de instâncias recursais que vigora no Brasil, reside hoje o argumento mais forte para a manutenção do foro privilegiado, ainda que restrito a um número menor de beneficiários. É que os processos julgados originariamente no Supremo, como foi o caso do Mensalão, suprimem as possibilidades de recurso e, em consequência, podem terminar em tempo mais breve do que se tivessem se iniciado em primeiro grau.

A efetividade do julgamento do mensalão e as recentes prisões do caso Lava Jato sugerem que foros privilegiados não são mais garantia de impunidade. O fato é que estes dois episódios são excepcionais e não necessariamente representam a grande massa de processos contra autoridades espalhados pelos diversos tribunais do Brasil.

Certo é que o modelo atual precisa ser revisto. A exemplo de outros países, alguma forma de foro privilegiado precisará ser mantida. O desafio é encontrar formas que conciliem a proteção de instituições,  A neutralização do poder de influência sobre a magistratura e a eficácia da prestação jurisdicional, sem perder de vista os ideais republicanos. Há algumas alternativas propostas e o debate precisa ser ampliado.

Em tempos de Lava Jato, o assunto deveria mobilizar a sociedade e o Legislativo.

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