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Big Data pode ajudar o cinema nacional a fazer as pazes com o público

Especial para o UOL

09/01/2016 06h00

Eduardo Escorel, citando René Bonnell, afirma que o cinema é uma indústria de protótipos. Não existe teoria, fórmula ou experiência que garanta o sucesso de um filme. Mesmo diretores consagrados e acostumados a gordas bilheterias e prêmios de excelência fracassam vez ou outra de maneira retumbante. Nos anos 1970, por exemplo, Michael Cimino venceu o Oscar com "O Franco Atirador" e logo depois levou a United Artists à falência com "O Portal do Paraíso". A imprevisibilidade do resultado seria, portanto, da essência do cinema. 

Não é exatamente esta a opinião da Netflix. A empresa americana acredita que a análise do comportamento de seus espectadores poderia dar uma boa dica sobre o que vai funcionar comercialmente. Por meio de algoritmos cada vez mais sofisticados, que servem até mesmo para prever as notas que o usuário vai atribuir aos filmes que vê, a Netflix vem usando o chamado Big Data (grande quantidade de dados disponíveis na internet) para produzir conteúdo de qualidade e que atenda a expectativa dos seus 65 milhões de assinantes.

A análise de Big Data é um dos assuntos da moda para quem lida com tecnologia. O tema ganhou notoriedade uns poucos anos atrás quando uma loja descobriu, por meio da análise de consumo de suas clientes, que uma adolescente estava grávida antes mesmo que ela pudesse contar a notícia para seu pai. Evidenciou-se, desse modo, o desafio que seria lidar com proteção da privacidade e dos dados pessoais no mundo do Big Data. Mas, para além dessa preocupação (que persiste e é muito relevante), é também possível interpretar grandes quantidades de informação para repensar o modo de produzir cultura.

Foi assim que "House of Cards" se consagrou uma das séries mais bem sucedidas da recente safra. As análises estatísticas mostravam que o público teria grande interesse em ver Kevin Spacey dirigido por David Fincher. Mas não apenas o elenco e o diretor foram escolhidos por meio da interpretação de dados. Isso seria até óbvio e certamente insuficiente para predizer o sucesso. Também as cores do cartaz da série foram definidas após escrutínio dos dados colhidos pela Netflix , de modo a assegurar o interesse do espectador.

Nesse contexto, o mais importante é perceber que a série atingiu o êxito esperado e, melhor ainda, com aprovação da crítica. A primeira temporada recebeu quatro indicações ao Globo de Ouro, inclusive de melhor série de televisão. A segunda recebeu três indicações e voltou a ser indicada como melhor série do ano.

A relação da Netflix com Big Data não para por aí. A empresa americana afirma saber exatamente em qual episódio de determinada série o público foi fisgado de modo irremediável. Segundo sua análise, ninguém cai de amores por uma série logo no episódio de estreia. O namoro fica firme entre o segundo e o oitavo episódios.

A ambição da Netflix se estende também ao cinema. Depois de distribuir alguns documentários consagrados, como "The Square" e "Virunga", em 2015 produziu "Beasts of No Nation", de olho nas indicações ao Oscar.

Toda essa preocupação em acertar (que não é movida exclusivamente a generosidade, sabemos) tem rendido ótimos frutos. A Netflix vale hoje mais do que a GM. Além disso, no Brasil, que é supostamente seu quarto maior mercado mundial, a Netflix já fatura mais do que a Band e a Rede TV.

Que se pode aprender de tudo isso? A Netflix está aparentemente fazendo a coisa certa. Depois de tantos anos de discussão a respeito da pirataria e de como downloads ilegais seriam prejudiciais à indústria do entretenimento, a Netflix prova o que já se imaginava: a pirataria tem um forte componente econômico. O modelo de negócio de venda de exemplares físicos –livros, CDs, DVDs– não encontra mais lugar no tempo presente.

Baixar arquivos também se mostrou uma prática repleta de inconvenientes: ocupam espaço, perdem-se, ficam corrompidos, podem infectar computadores. O serviço de streaming mediante pagamento de valor acessível tem se mostrado a primeira prática comercial de fato compatível com a circulação de bens digitais. E vale não apenas para o audiovisual, mas também para música e livros.

Não basta, contudo, dar acesso a preço convidativo se as obras não tiverem qualidade. E aí parece entrar toda a técnica da Netflix na análise de Big Data. Seu sucesso tem um componente econômico, mas evidentemente não dispensa o componente artístico.

É chegada a hora de o audiovisual brasileiro se apropriar das ferramentas tecnológicas para análise de Big Data. Uma pesquisa séria nesse sentido pode dar fôlego novo à produção, tanto televisiva quanto cinematográfica, e assim, quem sabe, ajudar a construir uma indústria audiovisual sustentável e plural, em que coexistem o autoral e o blockbuster. O Brasil, que há décadas vive uma crise com seu público de cinema (é só ver que em 2014 cerca de 65% dos filmes brasileiros exibidos no cinema não atingiram nem mesmo 10 mil espectadores), poderia muito bem se beneficiar disso.

Não se propõe aqui, naturalmente, a ditadura dos algoritmos. Nem a solução fácil de atender apenas o gosto já explícito da maioria, que se dispõe a ir ao cinema, por exemplo, especialmente para ver comédias com atores globais. A análise do Big Data de nossa produção audiovisual pode ser um caminho para a criação de obras com maior apelo popular (sem escolhas óbvias), com mais qualidade e ousadia. Talentos nós já temos. Talvez esteja faltando um pouco de pesquisa e de tecnologia.

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