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Abaixo o mito paternalista de que pobre precisa ser apresentado à música boa

Especial para o UOL

19/01/2016 06h00

Em 6 de janeiro último, o jornalista e crítico musical Tárik de Souza publicou artigo no UOL sugerindo o fim do "tabu redutor que confina os mais pobres à música brega". O autor não cita nominalmente gêneros ou artistas que estariam sob o guarda-chuva da "música brega", mas entende-se que estaria se referindo a sertanejos e funkeiros que, nos últimos tempos, têm dominado as listas de mais tocados nas rádios, aparições em programas de televisão e notícias em veículos de comunicação de massa do país.

A crítica é válida, subscrita por grande número de leitores que diariamente manifestam contrariedade nas áreas de comentários de notas a respeito publicadas aqui mesmo no UOL, mas pede uma discussão um pouco mais aprofundada. Antes de mais nada, é preciso desconstruir o argumento de que a música brega - seja ela a sertaneja ou o batidão do funk, carioca ou paulista - está confinada apenas aos ouvidos dos mais pobres.

Esteve. Em partes. Foi isso que apontou pesquisa do Ibope feita entre 2012 e 2013, que colocava o sertanejo como a trilha sonora preferida da classe C e a MPB e o rock como gêneros favoritos das classes A e B. Mas é fato que essa mesma pesquisa já cravava, naquele ano, que o sertanejo vinha crescendo e já era o estilo de música mais ouvido pelo brasileiro, com 58% de preferência.

De lá para cá, artistas sertanejos passaram de 65% para 75% de presença na lista das mais tocadas nas rádios brasileiras, segundo a última medição da Crowley, divulgada no final de 2015. O rock sequer apareceu. Na lista de mais tocadas de 2015 do serviço de streaming Spotify, opção de consumo de música um tanto mais elitizada que o rádio FM ou AM, os sertanejos Jorge & Mateus e Henrique & Juliano ocupam a 1ª e a 3ª colocação entre os artistas mais executados no Brasil no ano, respectivamente. Ao lado deles no Top 5, vemos nomes como o grupo de pop rock Maroon 5, o DJ de música eletrônica Calvin Harris e o cantor folk Ed Sheeran, que podem ser chamados de qualquer coisa, menos de música brega ou de pobre.

Vamos ter de esperar uma próxima medição mais abrangente do Ibope como a de 2013, mas quando ela sair é provável que a parcela de ouvintes das classes A e B que admitam curtir nomes do sertanejo aumente. Mero chute? Não para os realizadores do festival Brahma Valley, que investiram pesado na criação do primeiro evento sertanejo gourmetizado no Jockey Club de São Paulo, em 2015.

Números apresentados por eles ao mercado no ano passado sugeriam que 48% do público da música sertaneja já pertence às classes A e B. Com inspiração em festivais gringos como o de indie rock Lolapalooza ou o de eletrônica Tomorrowland e o slogan "o sertanejo como você nunca viu", o evento teve público de 50 mil pessoas com duas áreas VIP imensas que chegavam a cobrar R$ 1.000 por pessoa.

Quanto ao funk, com origens nas periferias das metrópoles de Rio e São Paulo, me parece também equivocado confiná-lo a guetos. Faz mais de uma década que produtores como Diplo e Daniel Haaksman fizeram o gênero explodir nas discotecas da Europa e dos EUA e, irônica, mas compreensivelmente, ajudaram o estilo 100% nacional a entrar pela porta da frente das casas noturnas da classe média-alta brasileira, de onde nunca mais saiu. Hoje em dia, ver a juventude bem-nascida entoando os versos de Cidinho e Doca "Eu só quero é ser feliz / andar tranquilamente na favela onde eu nasci" é tão realidade quanto uma camiseta de US$ 728 da grife de luxo francesa Givenchy com a inscrição "Favelas".

Não fosse a assimilação do funk pelas classes A e B e não teríamos, hoje, um fenômeno como a cantora Anitta - que fez um dos primeiros shows em São Paulo na Royal, uma das casas mais badaladas da Vila Olímpia. Inspirada nas popozudas dos bailes cariocas, Anitta diluiu um pouco o estilo e se transformou na artista pop mais influente do Brasil nos últimos anos, uma das poucas a disputar posições com os sertanejos, em 2015, no top 100 da Crowley, com videoclipe produzido pelo stylist de Madonna e divulgado em rede nacional no programa da Fátima Bernardes, na TV Globo.

Culpa da mídia?

Investir na argumentação de que sertanejo, funk, forró, arrocha, enfim a música brega, também comove corações de ouvintes das classes A e B, por vezes provoca nova reação imediata: "Mas é claro, é só isso que a mídia oferece". Bem, primeiro há que se discutir o que é ou não é "a mídia" em pleno ano 16 do século 21. A ideia da mídia como um canal de mão única em que o programador musical, jornalista ou diretor artístico seleciona o que bem entende e define o que o público - goste ou não - deve e vai ouvir, há muito tempo não faz sentido. Hoje, a internet, as comunidades virtuais e o acesso infinito, instantâneo e gratuito a toda música gravada do mundo implodiu essa ponte, e faz muito mais sentido pensar em uma mídia que apreende e aprende com o público do que o inverso.

E esse aprendizado tem se dado aos trancos e de maneira, por vezes, desastrada. Ainda que Tárik, em seu artigo, reclame mais espaço à MPB, à música instrumental e experimental nas páginas da grande imprensa brasileira, minha impressão é que esse espaço sempre houve, continua havendo e reluta em ser dividido com o lado mais "povão" da música brasileira.

Os mesmos jornais, portais e programas de televisão que dedicaram, recentemente, primeiras páginas, cadernos especiais e blocos inteiros para lamentar a morte de David Bowie - espaço mais que merecido, aliás -, penaram e apanharam quando não perceberam, de pronto, o impacto da morte precoce do sertanejo Cristiano Araújo, aquele que "ninguém conhece, exceto milhões", como bem colocou o "El País" na época.

"Como fomos capazes de nos seduzir emocionalmente por uma figura relativamente desconhecida?", desabafou Zeca Camargo, em uma coluna na Globo News, dias após o acidente que tirou a vida do cantor. "Temos tudo para adorar ídolos de verdade."

A resposta do público - que escolheu Araújo como cantor do ano em enquete UOL, com 242.029 votos - foi imediata e obrigou o jornalista a se retratar reiteradamente não só com os fãs, mas com artistas da música sertaneja. "Acho que ele tem viajar mais pelo Brasil, pra saber que por aqui a história é outra (...) esse povo tem que conhecer o que é ser caipira, e tem que nos respeitar", rebateu o cantor Eduardo Costa em vídeo divulgado na internet.

E é exatamente nesse ponto que devolvo a pergunta a Tárik e aos leitores que acreditam que o povo brasileiro, em especial as camadas mais pobres, "precisa entrar em contato com propostas diferentes, aptas a abrir horizontes estéticos" e que o sertanejo, o funk ou a música brega são assim tão diferentes "do BRock" e não podem ser considerados como "um movimento de baixo para cima, revelando artistas".

Se a música popular brasileira, o samba e a bossa nova merecem respeito por suas contribuições artísticas e culturais à vida do brasileiro, então por que não conceder o mesmo à música caipira, por exemplo, que está aí há quase um século, desenvolvendo-se, modificando-se, misturando-se e rejuvenescendo pelas mãos de artistas como Michel Teló, Luan Santana e Jorge & Mateus?

Se o funk carioca - que hoje é tão "morro" quanto já foi o samba - e o ostentação - tão paulista como já foi o rock - não são "movimentos de baixo para cima, revelando artistas", então como explicar a influência que seus representantes, de Valesca Popozuda a MC Guimê, exercem no modo do brasileiro falar, dançar, se divertir e criar?

Por fim, não poderia concordar mais com o artigo de Tárik, quando diz que os brasileiros precisam e merecem ter mais contato com nomes da nova MPB como Criolo, Emicida, Kiko Dinucci, Tulipa Ruiz e cia., mas discordo quando esse contato é apontado como uma maneira paternalista de elevar e resgatar "as classes menos favorecidas economicante" do atraso cultural. De onde estou, prefiro acreditar que somos nós, jornalistas, críticos musicais e, quem sabe ainda, formadores de alguma opinião, que precisamos nos reciclar e procurar relevância cultural e qualidade artística nos lugares de onde menos se espera.

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