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Até quando o mundo aceitará bombardeios a médicos e pacientes?

Especial para o UOL

27/02/2016 06h00

Os profissionais da MSF (Médicos sem Fronteiras) estão habituados a trabalhar em ambientes de conflito armado. Seguem protocolos de segurança rígidos, reduzindo ao máximo sua exposição a riscos, ao mesmo tempo em que procuram formas de não deixar a população ao abandono.

Não é raro que profissionais durmam nos hospitais para não comprometer suas vidas e garantir o atendimento dos pacientes, quando há frentes de batalha nas proximidades. Foi assim na madrugada de 3 de outubro de 2015, em Kunduz, no Afeganistão, quando 14 de nossos colegas –uns dormindo, outros operando– acabaram mortos por sucessivas bombas. Nesse ataque aéreo, 24 pacientes e 4 acompanhantes perderam a vida.

Os Estados Unidos reconheceram a autoria desse bombardeio e o atribuíram a erros humanos e a falhas técnicas. Para a MSF, as justificativas foram insuficientes. As Forças Armadas dos EUA conheciam a localização precisa do hospital e, logo depois que ele foi atingido, a organização entrou em contato com militares americanos no Afeganistão, numa tentativa vã de parar o ataque.

A organização teve a oportunidade de falar publicamente desse ataque e apelar a organismos internacionais. Solicitou um inquérito independente à Comissão Internacional Humanitária para a Apuração dos Fatos. No entanto, outras centenas de profissionais de saúde e de pacientes anônimos para o mundo estão sendo bombardeados em conflitos sem poder levantar sua voz.

“E se houver a investigação, que diferença isso fará?”. À pergunta, recebida tantas vezes, indagamos: nunca havendo, passaremos a aceitar ataques atribuídos a falhas técnicas e erros, quando é claro que estruturas médicas foram alvejadas? Vamos normalizar mais esse absurdo?

Porque é disso que se trata. Depois do terror de 3 de outubro, a MSF foi novamente confrontada com ataques a hospitais, clínicas e ambulâncias no Iêmen. Foram quatro ocorrências entre o final de outubro e janeiro deste ano. A organização fez um novo pedido de investigação independente, sem que exista, até agora, explicação oficial para esses bombardeios, dois deles realizados por aviões da coalizão liderada pela Arábia Saudita.

Na Síria, em 15 de fevereiro, um hospital apoiado pela MSF foi alvejado por mísseis lançados por aviões. O edifício de três andares ficou reduzido a escombros. Quando equipes de resgate ainda procuravam vítimas, as ruínas foram atingidas por mais bombas. Houve 25 mortos e 11 feridos, incluindo 16 pacientes e seus acompanhantes.

Leis de guerra

Em meados do século 19, quando ainda não existiam antibióticos ou vacinação em massa, foi redigida a primeira Convenção de Genebra, que estabeleceu a inviolabilidade dos hospitais e equipes médicas que atendiam feridos em conflitos. Em 1949, em consequência dos horrores da Segunda Guerra, consolidaram-se, nas atuais Convenções de Genebra, as “leis da guerra”, as normas do Direito Internacional Humanitário –entre elas as que garantem a preservação da população civil e de instalações médicas.

Hoje, 152 anos depois daquela primeira convenção, 4 dos 5 países que são membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU –Rússia, Estados Unidos, Reino Unido e França– participam da guerra na Síria. Até agora, nenhum deles está respeitando ou garantindo que seus aliados respeitem as normas pelas quais deveriam zelar.

Bombardeios arrasam mesquitas, mercados, escolas e hospitais. No relatório que a MSF divulgou recentemente, revelou-se que de 30% a 40% dos mortos e feridos de guerra, recebidos em 70 hospitais que a organização apoia no país, são mulheres e crianças.  

Estão matando médicos, enfermeiros, motoristas de ambulância, mães e seus filhos. O mundo tem assistido a isso quase que passivamente. Não há uma cobrança forte para que cessem os ataques a civis e para que parem de destruir hospitais e de matar médicos. Milhares de civis sírios estão sitiados, sem receber comida ou ter a possibilidade de sair em busca de refúgio.

Um hospital é um espaço neutro, um espaço de cura e de recuperação de forças e de esperança. Mas, na Síria, as pessoas passaram a ter medo de buscar alívio para suas doenças e ferimentos.

Um médico que testemunhou a carnificina desabafou à MSF: “Vou continuar a ajudar o meu povo até que a paz venha, mas depois disso não serei mais médico. Vi horrores demais”. Tal como ele, muitos outros profissionais de saúde se mantêm firmes na ajuda médica humanitária a um povo encurralado entre várias frentes de combate. O descaso diante dessa situação é uma monstruosidade. Não podemos aceitá-lo.

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