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Consultório médico não é lugar para conflitos políticos

Especial para o UOL

01/04/2016 06h00

Em meio a maior crise política dos últimos 50 anos é impossível para qualquer cidadão não ter uma opinião. A classe médica se encontra, arrisco-me a dizer, solidamente no campo antigoverno. As razões são muitas. Para além da Lava Jato, da recessão, dos áudios ou do Delcídio, acho que poucas categorias profissionais, ou até nenhuma, tenha tantas razões para se opor ao governo Dilma. O programa Mais Médicos e o discurso promovido pelo governo ao redor são encarados por muitos como um ataque pessoal e profissional.

Nos últimos dias esse conflito entre governo e médicos tomou corpo através de um evento, amplamente divulgado pela mídia e redes sociais. Segundo a narrativa veiculada, uma pediatra teria interrompido o atendimento de um bebê, pois a mãe da criança é filiada ao PT. O conselho regional do Estado se apressou a apoiar o direito da colega de ter agido desta forma.

Se entendo o sentimento da colega, se tenho empatia profunda por ela em um momento no qual deve estar sendo duramente atacada, sinto-me ao mesmo tempo obrigado a dizer que não concordo com a sua decisão e a considero incompatível com espírito ético da nossa profissão. Como indivíduos somos livres, como membros de uma profissão optamos livremente por praticá-la dentro de limites éticos.

Todo o médico tem o direito de se recusar a atender um paciente, desde que não seja uma situação de urgência e que exista a possibilidade do paciente ser atendido por outra pessoa. Esse dispositivo existe, em essência, para preservar o médico em situações onde existe risco de agressão física ou moral. Não existe, por outro lado, nenhum direito de recusar atendimento por discordarmos pessoalmente das opções políticas, religiosas, profissionais ou ideológicas, desde que a civilidade do médico tenha, é claro, a contrapartida da civilidade do paciente.

Em uma profissão de experiências profundas –que constantemente resvala na fragilidade humana, nas nossas contradições, nos erros que todos nós cometemos–, o conflito entre o que o indivíduo sente ou pensa e como o médico que ele é deve agir é constante. Esse afastamento do “eu” está no centro da nossa ética profissional.

Em oito anos de prática médica, ateu, me tornei anjo na boca de dezenas de pessoas, o que aceitei pacientemente por saber que essa compreensão religiosa do meu papel era fundamental para o enfrentamento da doença. Fui milagre, fui destino para tantos, quando meu universo interno é um de caos e incerteza. 

Cuidei de familiares de membros do PT de alto e baixo clero, como cuidei de qualquer outra pessoa, sem nunca discutir as contradições gritantes do governo que eles defendiam e defendem com tanta força. Ouvi um fazendeiro explicar o que deve ser feito com invasores de terra. Judeu, sentei ao lado de um senhor e o ouvi falar sobre a sua alegria infantil ao ver Hitler entrar nos Sudetos, e as agruras da defesa de Berlim diante do exército soviético.

Liberal, fiquei em silêncio diante de um comunista, partisan de Tito descrevendo como um prisioneiro alemão ou um fazendeiro “capitalista” era executado. Apaixonado pela história, sistema político e alma americana, tive diante de mim alguém que viu os corpos de crianças queimados pelo Napalm no Vietnã, o que fez dele para sempre um cético em relação ao seu próprio país.

Lidar com seres humanos significa ter seus valores questionados diariamente, e o único caminho como médico é entender que dentro do consultório são os valores da medicina e os do paciente que estão em vigor, e não os nossos valores pessoais.

Eu não sou de forma alguma especial. As centenas de milhares de médicos do Brasil fazem esse exercício de tolerância, esse exercício duro, mas essencial, de cuidar sem julgar todos os dias. E às vezes falhamos. A polarização que existe neste momento no nosso país tem causa, explicação e papel. Tem inclusive lugar próprio –a rua, a mídia e o Congresso Nacional. O consultório, com certeza, não é um deles.

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