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Usar machismo para explicar estupro é uma forma de culpar a vítima

Especial para o UOL

31/05/2016 06h00

Nos últimos dias, a mídia e as redes sociais foram tomadas por manifestações acerca do estupro coletivo de uma adolescente, ocorrido no Rio de Janeiro. A discussão sobre a violência contra a mulher tomou o centro do espaço público, e independente de haver quem diga que houve consentimento, o debate se estabeleceu e é necessário.

Não importa em absoluto a roupa que a garota usava, o seu histórico pessoal e amoroso, o seu consumo de substâncias licitas ou ilícitas, que poderiam alterar seu estado de consciência. Já é fato conhecido que o uso desses recursos implica um processo desonesto de culpabilização da vítima. Para qualquer pessoa dotada de bom-senso, deveria ser óbvio que a culpa nunca é da vítima, e, embora o jargão seja facilmente reproduzido na teoria, na prática é sempre mais fácil cair nessa armadilha.

A maioria de nós sente-se comovida e indignada quando confrontada com eventos que escancaram nossa fragilidade e potencial de destruição. É natural buscarmos explicações e tentarmos entender o que houve, na esperança de que, ao entender, possamos evitar que a desgraça se repita. Algumas pessoas, tomadas por covardia ou mesmo mau-caratismo, estão dispostas a  aceitar qualquer coisa na vítima como motivo da agressão, de modo a calar seu próprio medo com um simples “nunca aconteceria comigo ou alguém que gosto porque não erraríamos assim, não daríamos motivo”.

São aquelas pessoas que, quando ouvem sobre um estupro, um assassinato, um assalto, dizem: “Mas ela estava com qual roupa?”; “Mas ele parou no farol vermelho à noite?”; “Mas eles estavam de vidro aberto”? “Mas ostentou o tênis caro?”; “Mas ela bebeu?”; “Mas ela foi na casa do cara?”

Todas essas estratégias culpam a vítima de modo a implicar que ela própria poderia ter evitado seu destino trágico –assim como aqueles que acham os “motivos” parecem saber evitar o seu. Como se a violência (contra a mulher ou qualquer cidadão) fosse um problema de conduta pessoal da vítima e não o que  realmente é: um problema ético-político.

Machismo não é o culpado

Não se trata de um episódio de “descontrole” na vida de 30 homens, não se trata de loucura, não se trata de doença. Não é questão de fisiologia, mas sim de moral. Mas existe uma outra forma bastante sofisticada de culpar a vítima, ainda que não reconheçamos: trata-se do movimento de alocar a explicação para uma tragédia em uma instância abstrata e diluída que, nesse caso específico, atende pelo nome de machismo.

Se o responsável pela violência que a garota sofreu não são puramente seus mais de 30 algozes, mas sim o machismo atuando neles, como procedemos na prevenção, reparação, responsabilização? Como iremos culpar ou responsabilizar aquele que não age por si mesmo, mas sim influenciado ou tomado por algo que é superior a si?

Todavia, só é possível chamar à responsabilidade um sujeito, e não um objeto, um “quem” e não um “o quê”. Então, quem é o machismo? Eu? Você? Só os homens? Os homens, mas também algumas mulheres? Todos nós? Se é a sociedade (outra abstração) que é machista e todos somos a sociedade, então todos somos os culpados, inclusive a vítima, que também é a sociedade? Ou apenas não são culpados as exceções, os poucos não machistas dentro de uma sociedade machista? Nesse caso, como determinar que uma mulher que sofreu estupro não é culpada por fazer parte dessa estrutura? Se essa mulher hipotética não “lutou” pelos direitos das mulheres, ou não é feminista –única garantia de não ser machista– e sofre essa agressão, a culpada também é ela?

Afirmar que a culpa é de uma cultura do estupro (que realmente existe, lembremos os ataques em massa de imigrantes muçulmanos em Colônia e o Boko Haram escravizando sexualmente meninas na África) tampouco resolve a questão. Pode ser que no caso específico ocorrido recentemente houvesse uma banalização do estupro e uma glorificação do estuprador, uma aceitação social do estupro.

Mas, se é assim, só o é na mesma medida em que há nesse mesmo contexto uma banalização da violência como um todo, uma glorificação do criminoso em geral. No máximo, tal abordagem nos oferece o retrato de um Brasil muito distinto daquele da classe-média engajada ou alienada (não faz diferença). Dizer que há uma cultura do estupro disseminada por toda sociedade brasileira que é responsável pela violência brutal sofrida pela garota implica a ideia de que seus agressores foram formados para a violentarem, pois é precisamente isso que uma cultura faz.

Além disso, os sinais dessa cultura se evidenciariam na normatividade do estupro, na isenção dos culpados, na exaltação do comportamento do estuprador e na glorificação social deles. Nesse sentido, os mais de 30 agiram achando que faziam aquilo que foram “educados” para fazer. Se o problema foi a formação, então agiram monstruosamente porque não sabiam que assim faziam?

Não parece que seja assim. Do contrário, como conciliar uma sociedade que incentiva e forma estupradores com a revolta e indignação pública que casos assim desencadeiam? Se o estupro fosse normativo, não haveria necessidade de se dopar vítimas, ameaçá-las, valer-se de armas. Nada haveria de ser justificado pelo estuprador ou reivindicado pela vítima –afinal, não seria errado e o estuprador ainda tem a chance de ser admirado por todos. É absolutamente evidente que tais apontamentos aqui expostos não sugerem a não-existência de um problema real de violência. Na realidade, é o contrário: a sugestão de que devemos parar de atenuar um problema de violência tratando-o como uma simples ideia equivocada.

Ideias não salvam, não acolhem, não matam, não violentam ninguém por si mesmas. Mas pessoas usando tais ideias sim. Quando responsabilizamos uma concepção abstrata e coletivista permitimos que toda sorte de divagações acabem em movimentos circulares que alcançam e culpam o indivíduo inocente.

E a vítima nunca tem culpa. Nem mesmo quando tentamos justificar o injustificável, dizendo que foi fruto de machismo. Enquanto responsável, o machismo é intocável e inalcançável justamente por seu teor coletivista, aquele tudo que vira nada, aquele “todo mundo tem culpa” que vira, na prática, um “a culpa é de ninguém”. E assim seguimos.

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