Topo

Prender pequeno traficante como se fosse o líder da facção é abusivo

Especial para o UOL

01/07/2016 06h00

O Supremo Tribunal Federal (STF) deu um importante passo no sentido de desfazer uma das maiores distorções do sistema prisional brasileiro: ele negou a equiparação entre o chamado tráfico privilegiado –em que o réu é primário, tem bons antecedentes e não integra uma organização criminosa– e crimes hediondos.

Até hoje, a maior parte dos presos por pequeno tráfico de drogas era punido sob o mesmo regime de progressão de pena daqueles condenados por crimes como estupro e latrocínio, numa lógica desproporcional e sem sentido. Para efeito de comparação, crimes hediondos têm penas que podem chegar a 30 anos, já as penas para tráfico privilegiado não costumam chegar a 5 –uma grande parte, inclusive, é fixada no mínimo legal de 1 ano e 8 meses e pode ser substituída por serviço comunitário.

Essa distorção começou com a Lei de Drogas, de 2006. Pois, ao mesmo tempo em que ela aumentou consideravelmente as penas por tráfico –que é equiparado a crimes hediondos–, seu texto instituiu a modalidade privilegiada, com o intuito de diferenciar os réus com menor potencial ofensivo.

Porém, tal distinção nunca foi integralmente aceita pelos juízes. Estes continuaram aplicando o regime mais duro de progressão de pena a presos que claramente deveriam ser diferenciados dos grandes traficantes e, consequentemente, passaram a tardar para progredir entre os regimes fechado, semiaberto e aberto. Assim, agravaram a superlotação dos presídios.

Entre 2006 e 2014, segundo dados do Ministério da Justiça, o número de presos por tráfico cresceu de 44 mil para aproximadamente 147 mil pessoas. Hoje, quase 30% da população prisional responde por delitos relacionados ao tráfico de entorpecentes. Se considerarmos apenas as mulheres, a taxa salta para 64%.

Como se vê, uma consolidação da equiparação –que já acontecia na prática– teria um efeito explosivo no sistema prisional. Agora, as pessoas presas por tráfico privilegiado serão submetidas ao regime de progressão de pena que é aplicado aos presos comuns. Não se trata, portanto, de conceder impunidade aos condenados por pequeno tráfico, mas sim de garantir a proporcionalidade no cumprimento da pena, que­, vale lembrar, deve ter sempre como fim a ressocialização.

O tráfico privilegiado é costumeiramente praticado por: mães pobres que precisam complementar a renda e, para tanto, levam a droga junto ao corpo (conhecidas como mulas); jovens da periferia aliciados por pessoas com quem convivem desde a infância; estudantes e trabalhadores que são usuários de drogas e, para sustentar o vício, acabam vendendo informalmente.

Essas pessoas não usam armas, não têm qualquer controle sobre os lucros e frequentemente, para se diminuir a atenção sobre os grandes carregamentos e sobre os verdadeiros donos das drogas, são entregues à polícia pelos próprios líderes das facções, que terceirizam o risco e embolsam lucros longe dos holofotes. Dizer que tais pessoas pertencem às grandes organizações criminosas é dar à vítima o mesmo tratamento que se dá ao algoz.

A decisão do STF é uma vitória, porque consolida a ideia de que colocar essas pessoas na prisão é abusivo, desproporcional e contraproducente. Sinaliza ainda que os recursos gastos com o “tráfico de formiguinha” poderiam ser usados para o combate ao tráfico de armas, para a elucidação de homicídios e para o desmonte das grandes empreitadas dos mercadores internacionais de drogas.

O Supremo não está sozinho nesse entendimento. Recentemente, a Comissão Global de Políticas sobre Drogas, que tem entre seus fundadores o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, pautou os acordos feitos na Sessão Especial da Assembleia Geral da ONU sobre Drogas (Ungass), em 2016. Na ocasião, os especialistas das Nações Unidas pactuaram o abandono da perspectiva de guerra total às drogas e deram passos concretos para reconhecer o problema da forma que ele de fato é: uma questão de saúde pública. Esperamos que a decisão da Corte seja a primeira do Brasil no mesmo sentido.

  • O texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL
  • Para enviar seu artigo, escreva para uolopiniao@uol.com.br