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Uma parábola e as vantagens do conteúdo local

Especial para o UOL

28/08/2016 06h00

Um dia desses, meu neto me perguntou: “Vovô, o que é esse tal de conteúdo local que toda hora você fala?”. Confesso que me senti perdido, pois, se há anos tento, sem sucesso, explicar para mestres e doutores os benefícios do conteúdo local, como falar para que uma criança entenda? Foi quando me veio à lembrança de que Jesus, quando queria facilitar o entendimento de seus ensinamentos, usava parábolas, e decidi também tentar usá-las.

Em uma cidade do interior, dessas que ninguém sabe onde fica, e aí o morador fala que fica perto de uma outra mais conhecida, vivia um bem-sucedido padeiro, dono da única padaria da cidade, conhecido como Zé do Pão. Zé do Pão era famoso, todos o conheciam. Fazia parte, junto com o delegado, o gerente da agência da Caixa Econômica e o padre, da elite da cidade.

Seus produtos eram da melhor qualidade. Comprava a farinha, o fermento e o açúcar da mercearia do João do Feijão, e o fubá comprava da fazenda de Dona Hermelinda –conhecida como Dona Hermê, pois de linda nada tinha. Empregava várias pessoas da cidade. Era o Pedro, cunhado de sua esposa, quem fazia as entregas na hora certa e que conhecia o gosto de cada cliente: clarinho, mais tostado, de milho, pão doce. Tinha também o folguista, o faxineiro, os vendedores. Todos eram moradores do local e com os pequenos salários provenientes dos negócios da padaria iam vivendo e fazendo a cidade viver.

O forno era à lenha, comprada do Tonho Carvoeiro, dono uma pequena propriedade onde seu avô havia plantado eucaliptos quando se aposentou como sinaleiro da antiga rede ferroviária federal. Os ovos, de galinha caipira, eram fornecidos pelo Chico Pinto, dono do único aviário do local e que nas sextas-feiras também vendia carne de porco, para o caprichado almoço de domingo de seus clientes.

Esses fornecedores, em contrapartida, também eram seus principais clientes e, assim, rodava a “complexa” economia local. Todos sobreviviam com algum conforto, incluindo ainda o barbeiro, o farmacêutico, o dono do boteco e outros personagens que podem ser considerados figurantes nesta história.

As bisnagas, pães doces e sonhos eram tão gostosos que sua fama ia longe e, vez por outra, alguns visitantes habituais ou viajantes que passavam pelo local saboreavam algumas de suas delícias. Na hora das fornadas, a cidade mudava de astral, movida pelo delicioso aroma de pão quentinho.

Zé ganhava para os gastos e ainda sobrava algum. Tinha conseguido comprar um fusquinha, que era velhinho, mas estava inteiro e o vendedor falara que tinha sido “carro de moça” e que nunca havia batido.

Um dia, a cidade acordou com algo diferente, amanheceu com muitas pessoas estranhas usando chapéus estranhos, máquinas estranhas e com atitudes estranhas. A cidade parou para tentar entender o que estava acontecendo.

Um moço bem aparentado, com um desses telefones de bolso, que chamava de celular, informou que estavam ali para prospectar petróleo, palavra que ninguém entendeu no início, mas que depois chegaram à conclusão que era um nome sofisticado para “procurar petróleo”.  Logo perceberam que era o progresso chegando. O petróleo enriquece as pessoas por onde passa e deixa um rastro de fortuna. Aos poucos, todos se animaram com a novidade.

Com esse povo todo chegando, a clientela do Zé do Pão foi aumentando e, em pouco tempo, percebeu que sua padaria estava ficando pequena para tanta encomenda e começou a expandi-la. Alugou as lojas vizinhas e logo surgiram os palpiteiros –em alguns lugares, recebem o nome de consultores–, que começaram a questionar os métodos do padeiro: “Por que o senhor não compra a farinha direto da fábrica, que vende mais barato que o João do Feijão?”. Outros diziam que forno a lenha era um atraso e que as padarias das cidades grandes já usavam fornos elétricos. “Em vez dos ovos frescos, use ovo em pó, mude o seu sistema de entrega, utilize motoqueiros para que a distribuição fique mais rápida e eficiente”.

Por fim, o trabalho aumentou tanto que o Zé já não estava mais dando conta. Então, um dos que haviam chegado sugeriu: “Por que não contrata uma empresa para trabalhar para o senhor? Existem empresas que podem encomendar as matérias-primas, produzir os pães e comercializá-los, e senhor ficaria só contabilizando os lucros. ”

A tal empresa foi contratada e acabou ganhando o apelido de EPCista, aproveitando as iniciais das principais atividades contratadas. Pronto, agora o Zé do Pão poderia aproveitar a vida. Tudo se movimentava e funcionava sem que fosse necessário passar o dia todo “ralando” na padaria, que, a essa altura dos acontecimentos, já ocupava todo o quarteirão. O Zé nunca tinha visto tanto dinheiro. Vendia cada vez mais, mas pouco a pouco foi percebendo que, apesar de vender muito, seu lucro estava diminuindo, a ponto de precisar vender o fusquinha para pagar suas contas.

Com o passar do tempo, o Zé percebeu que nem tudo eram flores. Sua situação piorava a cada dia e havia perdido seus antigos clientes, que, na verdade, haviam empobrecido por perderem boa parte de sua receita que vinha das compras locais e das pessoas que o Zé mantinha com suas compras, empregos e serviços contratados. Os antigos moradores locais foram perdendo poder aquisitivo, em um cruel efeito cascata.

A essa altura, os pães já quase nada ou nada continham de produtos locais. Haviam perdido as características que tornaram o Zé do Pão famoso e, quando os visitantes se retiraram para prospectar em outros locais, a cidade estava quebrada e, em consequência, o Zé ficou também sem o seu ganha-pão.

Aí já era tarde demais. A reconstrução a partir do zero a que tinha chegado não era impossível, mas seria muito sofrida. Foi então que ele percebeu a vantagem do conteúdo local que antes havia em seus pães e sua importância na movimentação e no desenvolvimento da economia local.

No período em que estava em franco crescimento, surgiram muitas pessoas que se aproveitaram da inocência do Zé do Pão e desviaram boa parte do dinheiro arrecadado como propina aos políticos das cidades vizinhas, enriquecendo os diversos intermediários que surgiram com a possibilidade de terceirização, crescimento desordenado e incapacidade de controle.

Nessa altura, meu neto me interrompeu: “Acho que entendi. O que o seu Zé comprava na cidade era o conteúdo local do pão e quando parou de comprar os ingredientes nas lojas da cidade, parou de dar dinheiro para os moradores da cidade e eles não puderam mais comprar o pão”. E o que aconteceu com os que roubaram o dinheiro do seu Zé?”.

Eu respondi: “Bem, isso já é outra parábola e que, embora muita gente acredite no contrário, nada tem a ver com conteúdo local!”

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