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Trump faz pais da Constituição dos EUA se revirarem no túmulo

Chip Somodevilla/Getty Images/AFP
Imagem: Chip Somodevilla/Getty Images/AFP

Especial para o UOL

11/11/2016 06h00

“Democracia pura, como rum puro, facilmente produz intoxicação e com ela milhares de travessuras e besteiras”. O alerta é de John Jay, o primeiro chefe de Justiça a presidir a Suprema Corte dos Estados Unidos e considerado um dos “pais fundadores” do país  –título dado àqueles que, no século 18, formularam como deveria ser o sistema de governo da primeira república democrática da história moderna.

Jay não foi o único dos “pais fundadores” a fazer referências desfavoráveis à democracia, tal como ela era entendida no contexto em que eles escreviam. Podemos encontrar linhas semelhantes nos textos de Alexander Hamilton, James Madison e Thomas Jefferson. Não é à toa que a palavra democracia não aparece uma única vez na constituição dos Estados Unidos. Esta, aliás, é uma das razões que explica a existência do colégio eleitoral –mecanismo que soa tão estranho às repúblicas de voto direto nascidas após a fundação dos Estados Unidos. 

Mas, afinal de contas, o que temiam os elaboradores da Constituição dos Estados Unidos? Dentre outras coisas, temia-se que a “paixão das massas” ou a “multidão desenfreada” solapasse a própria democracia. Daí a necessidade de se criar mecanismos, ainda que aristocráticos, a fim de evitar que a democracia se transformasse em tirania, impedindo a ascensão de facções que estimulariam animosidades e agiriam contra o interesse comum.

Hamilton, que escreveu bastante sobre o tema, definia uma facção como “um certo número de cidadãos, perfazendo uma minoria ou uma maioria do todo, que são unidos e incitados a partir de um impulso comum de paixões, ou de interesses, adverso aos direitos dos outros cidadãos, ou dos interesses permanentes da comunidade. ”

De fato, até a eleição do presidente Woodrow Wilson, que justificou a entrada dos Estados Unidos na Primeira Guerra como uma forma de “fazer o mundo seguro para a democracia”, a palavra era usada com parcimônia pelos presidentes americanos. Claro que com o tempo, tanto a ideia quanto a prática da democracia foram se aperfeiçoando até ela se tornar, nas famosas palavras de Churchill, “a pior forma de governo, excetuando-se as demais”.

Entretanto, em tempos de Trump, o alerta dos pais fundadores parece presciente. Seria a ascensão meteórica do candidato republicano produto da paixão de massas desenfreadas, ou seja, sem os freios instituídos originalmente pela Constituição dos Estados Unidos? Seria o trumpismo o equivalente a uma facção, no sentido hamiltoniano do termo? Ainda que seja cedo para dar uma resposta satisfatória, uma coisa parece certa: Donald Trump é produto de um populismo que certamente deve fazer os autores de “O Federalista” se revirarem no túmulo.

Se entendermos que o populismo depende de um líder carismático que consiga fazer seu apelo diretamente às massas, perpassando as instituições tradicionais e ignorando as elites estabelecidas, Donald Trump é a perfeita definição do termo. Sua ascensão dentro do Partido Republicano durante as primárias se deu a despeito da explícita vontade da elite do partido. Dois exemplos são suficientes para ilustrar isso de forma clara.

Primeiro, o discurso proferido por Mitt Romney, que foi o candidato republicano à presidência nas últimas eleições, tentando frear a nomeação de Trump durante as primárias chamando-o, entre uma série de outros adjetivos bastante desabonadores, de uma fraude.

O segundo exemplo é a briga aberta de Trump com a família Bush –esta que pode ser descrita como a própria definição da elite do Partido Republicano. Uma vez nomeado pelo partido, o candidato Trump, segundo a revista Forbes, não recebeu doação de nenhum presidente dentre as 100 maiores empresas dos Estados Unidos. Repito, nem de um. O banco Goldman Sachs chegou a proibir seus empregados de doarem para a campanha do republicano. Parte significativa da campanha de Trump foi financiada com dinheiro do próprio candidato e com uma avalanche de pequenas doações.

Além de Mitt Romney e da família Bush, Trump não recebeu apoio de importantes figuras do partido como John McCain e Condolezza Rice. Em muitos casos –como o do próprio líder do partido no Congresso, Paul Ryan–, o apoio se deu de forma constrangida. Do outro lado, tínhamos uma candidata com apoio aberto da elite do partido desde as primárias –como os apoiadores de Bernie Sanders descobriram a partir de vazamentos do Wikileaks–, da elite financeira, de artistas e intelectuais, da grande imprensa em geral, e com uma operação de financiamento talvez sem paralelo na história recente das campanhas à presidência.

Nada disso impediu a eleição de Donald Trump, que será o único presidente dos Estados Unidos a jamais ter ocupado um cargo político ou militar de importância. O bilionário parece ser, gostem ou não seus detratores, o candidato “do povo”, sendo que sua ascensão deriva de uma série de fatores que, como muitos já perceberam, parecem longe de serem um fenômeno exclusivo dos Estados Unidos. Porém, isso é uma questão para outro texto.

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