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Thiago Guimarães: Chegou a hora de São Paulo debater tarifa zero?

Em Vargem Grande Paulista, ônibus passaram a transportar 3 mil passageiros a mais por dia após redução na tarifa - Divulgação/Prefeitura de Vargem Grande Paulista
Em Vargem Grande Paulista, ônibus passaram a transportar 3 mil passageiros a mais por dia após redução na tarifa Imagem: Divulgação/Prefeitura de Vargem Grande Paulista

Thiago Guimarães

Especial para o UOL

07/10/2020 19h17

Do fura-fila ao aerotrem, do bilhete único às ciclovias, dos investimentos em metrô à preferência por corredores de ônibus. A pauta da mobilidade urbana costuma animar a disputa eleitoral pela prefeitura de São Paulo, cidade traumatizada por quilométricos congestionamentos viários, pelas experiências de superlotação no transporte coletivo e pelos esboços de calçadas, que estão longe de cumprir sua função principal. Neste ano, mais uma proposta de alto apelo político estará em discussão: a tarifa zero.

Os dois principais candidatos a prefeito posicionados à esquerda do espectro político-ideológico, Guilherme Boulos (PSOL) e Jilmar Tatto (PT), propõem implantar a tarifa zero de forma gradativa em São Paulo — primeiro garantindo passe livre para desempregados e estudantes, e depois concedendo a isenção do pagamento da tarifa a todos os usuários do transporte coletivo.

Orlando Silva (PCdoB) promete gratuidade no transporte a desempregados. Márcio França (PSB) defende a tarifa zero nos domingos e feriados. À exceção de Marina Helou (Rede), que evoca a adoção de uma "tarifa social", que estaria à altura da capacidade de pagamento dos usuários, a modicidade tarifária não é tema central no programa de governo dos demais candidatos.

Defensores da tarifa zero argumentam que a proposta consiste em um meio de garantir a todos os cidadãos o direito constitucional de transporte e reduzir as desigualdades de acesso a trabalho e serviços. Seria também uma forma de tratar passageiros de transporte coletivo da mesma forma que motoristas de automóvel, bastante habituados a socializar os custos de uso da infraestrutura viária, inclusive com aqueles que não têm carro.

Já seus opositores costumam associar a ideia de gratuidade aos riscos de vandalismo (na linha do "brasileiro não valoriza o que não é pago") e à maior superlotação no transporte (pessoas passariam a usar ônibus até para trajetos que poderiam ser realizados a pé).

Por representar, via de regra, um aumento das despesas públicas, também classificam a tarifa zero como uma aventura demagógica e um atalho para a irresponsabilidade fiscal: a não cobrança da tarifa castigaria ainda mais o erário municipal em um momento em que a arrecadação está em baixa.

Esta não é primeira vez que a ideia de implementar a gratuidade da tarifa em todo o transporte coletivo municipal ingressa no debate político na cidade de São Paulo. No começo dos anos 1990, o governo de Luiza Erundina (prefeita entre 1989 e 1992 pelo PT e hoje candidata a vice-prefeita na chapa de Boulos) gestou a ideia e elaborou um projeto de lei, que, no entanto, não foi votado pelos vereadores.

A proposta sofreu resistência da oposição e não foi amplamente encampada pelo próprio partido do governo. Detalhes da natimorta tarifa zero em São Paulo estão documentados em livro recém-publicado, de autoria do ex-secretário de transportes, Lúcio Gregori, e seus antigos colegas.

Se, por um lado, a ideia de tarifa zero ganhou densidade naquele peculiar momento histórico, o custo do transporte coletivo costuma ser preocupação constante de boa parte dos estratos de menor renda. Sabe-se que o transporte abocanha fatia considerável dos gastos de consumo dos brasileiros que vivem em cidades.

O custo do transporte também ocupa o noticiário todos os anos, nas semanas que antecedem o Ano Novo, quando governantes precisam se entender e anunciar o valor da tarifa vigente no ano seguinte. Tais decisões não são livres de tensões.

No final de 2015, por exemplo, a inicial firmeza de Fernando Haddad (prefeito pelo PT entre 2013 e 2016) em não recuar do aumento da tarifa acordado com o governador do estado e seus confrontos com as manifestações populares encabeçadas pelo Movimento Passe Livre abocanharam parte da popularidade que lhe faltou para disputar o segundo turno com João Doria (PSDB).

A pauta também entra em evidência quando se discute o aprimoramento da política de integração do transporte. Hoje predomina o entendimento de que o bilhete único, ao baratear o deslocamento daqueles que dependem de baldeações, contribuiu decisivamente para o aumento da participação do transporte coletivo na divisão modal, revertendo continuada tendência registrada ao longo de 50 anos.

Uma boa dose da polêmica em torno da tarifa zero é alimentada pela falta de dados confiáveis sobre a imobilidade no território metropolitano decorrente dos altos custos de transporte, por exemplo.

Os mais robustos levantamentos sobre mobilidade urbana em metrópoles brasileiras descrevem apenas os fluxos realizados, mas deixam de olhar para as necessidades de mobilidade que não se materializam em deslocamentos. Quantas pessoas em uma cidade como São Paulo não se locomovem por causa de tarifa alta? Quais os destinos dessas viagens suprimidas? O que os cidadãos deixam de fazer ou fazem com menor frequência por conta do alto custo de transporte?

Recentes experiências de implementação de gratuidade universal no transporte trazem à tona dados importantes. Em Vargem Grande Paulista, na região metropolitana de São Paulo, logo depois que a tarifa foi reduzida de R$ 3,70 para R$ 0,00, os ônibus municipais passaram a transportar 3 mil passageiros a mais por dia — o equivalente a 6% da população daquela cidade.

A operação da pequena frota de coletivos (13 veículos ao todo), antes bancada pelo girar de catracas, passou a ser financiada por uma contribuição cobrada de empresas (cerca de R$ 40 por funcionário registrado, por mês), receitas da venda de espaços publicitários em ônibus e paradas, multas de trânsito, entre outras fontes.

O forte salto do número de usuários nos três meses que se seguiram à tarifa zero, em novembro de 2019, sugere que a mobilidade de parte da população daquele município de 50 mil habitantes estava represada. Os casos de pichação e vandalismo nos ônibus e paradas de fato aumentaram em seguida da tarifa zero, segundo relata o secretário de planejamento urbano e obras municipais, Áureo Fiorita. Mas o problema foi contornado com iniciativas de comunicação da prefeitura. Ele também acredita que esse "programa social", como denomina a tarifa zero, ajudou a eliminar o transporte clandestino e a aumentar os lucros do comércio local.

Mas a abolição da tarifa em Vargem Grande Paulista nunca fez parte do plano de um governo radical de esquerda, nem foi inicialmente motivada pela utopia da cidade acessível a todos. Foi, isso sim, a pragmática resposta encontrada pela prefeitura, que se recusou a conceder aos operadores dos ônibus subsídios públicos por serviços prestados com contestada qualidade pelo menos desde 2016.

O passe livre foi onde desembocaram as interações do poder público com comerciantes e empresários locais no debate em torno das fontes de financiamento do transporte e da pergunta sobre quem paga a conta.

Apesar desta e de experiências em lugares mais longínquos, as chances reais de implementação da tarifa zero em cidades como São Paulo devem ser calculadas com cautela.

O atual contexto político é altamente restritivo para se debater com razoabilidade méritos e deméritos de propostas pouco convencionais. Nem entidades atuantes no setor de mobilidade urbana nem partidos políticos tecnicamente desequipados conseguirão sustentar com a necessária profundidade o debate público sobre a tarifa zero. Para todos esses atores, será mais confortável continuar repetindo o mantra genérico da necessidade de se investir mais em transporte coletivo.

Além disso, pairam dúvidas sobre a importância do transporte coletivo como solução de mobilidade urbana no "novo normal", uma vez que o retorno do volume de passageiros aos níveis anteriores à pandemia depende da possibilidade de se viajar com segurança no transporte coletivo e da extensão da adoção das modalidades "à distância" na economia e em outras atividades.

Por fim, o transporte coletivo é ameaçado não só pela concorrência com o automóvel individual, mas crescentemente por soluções de mobilidade oferecidas por plataformas de tecnologia.

Durante a quarentena da pandemia do novo coronavírus, os principais porta-vozes do setor de transporte coletivo expressaram enorme preocupação com o risco de "colapso" em função do desequilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão. De universidades a organizações não governamentais e lobistas, formou-se rapidamente um relativo consenso quanto à necessidade de o governo federal prestar urgente socorro aos concessionários.

Poucos questionaram os fundamentos do modelo de financiamento do transporte coletivo predominante no Brasil e raríssimos se perguntaram que tipo de transporte atende às necessidades de locomoção daqueles que perderam renda e emprego durante a pandemia ou da já imensa massa de desempregados nesses tempos de recessão.

Mas justamente agora que a renda de boa parte da população está comprimida e a própria viabilidade da prestação de serviços de transporte está colocada em xeque, colocar em pauta alternativas de financiamento do transporte coletivo — e, entre essas, a tarifa zero — faz-se muito necessário.

* Thiago Guimarães é doutor em mobilidade urbana