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OPINIÃO

Ômicron desperta olhar colonialista e faz Brasil esquecer elos com a África

Estátuas exibidas no museu Quai Branly, em Paris, na França. Roubadas durante o século 19 do antigo reino do Daomé, as peças serão devolvidas ao Benim - Christophe Archambault/ AFP
Estátuas exibidas no museu Quai Branly, em Paris, na França. Roubadas durante o século 19 do antigo reino do Daomé, as peças serão devolvidas ao Benim Imagem: Christophe Archambault/ AFP

Especial para o UOL

01/12/2021 04h00

A descoberta do ômicron, uma nova variante do coronavírus, desencadeou uma nova onda de preconceito e estigmatização contra o continente africano. É filme repetido. A bola da vez é a covid 19, mas foi assim com a epidemia do HIV, nos anos 1990, e com o Ebola, na década seguinte.

O que acontece agora, porém, sinaliza uma guinada no que parecia ser uma tardia e tímida reparação histórica por parte dos países ocidentais aos anos de exploração da África. O Brasil, contudo, além de se descolar desse movimento, tratou não só de ignorar seus laços indissociáveis com o continente como passou a reproduzir por lá o pior do colonialismo. Algo que nem os criadores da ideia querem mais.

Assim que os cientistas sul-africanos revelaram ao mundo a nova cepa, mais contagiosa do que as versões anteriores (embora menos letal, segundo estudos preliminares), as nações europeias imediatamente estabeleceram protocolos de segurança. E, como não podia deixar de acontecer, começou-se a falar, com preocupação, da "cepa africana". Os Estados Unidos restringiram a entrada de passageiros vindos de oito países africanos. A União Europeia, por sua vez, recomendou a restrição a sete países. O Brasil fechou as fronteiras com seis países africanos antes mesmo da confirmação da nova variante em alguns deles.

A África é o continente com a menor taxa de vacinação do mundo. Estima-se que somente 7% da população tenha sido totalmente imunizada. Os motivos são variados, desde problemas em adquirir os imunizantes até a ausência de sistema de saúde pública eficiente que desse conta de uma vacinação em larga escala, alcançando inclusive as áreas mais rurais dos países. Mas o descaso das potências internacionais deve também entrar na conta. Como consta na carta aberta dos escritores Mia Couto, de Moçambique, e José Eduardo Agualusa, de Angola, a solidariedade internacional, tão propagandeada no ano 1 da covid, não alcançou o continente.

"Em vez de se oferecer para trabalhar juntos com os africanos, os governos europeus viraram costas e fecharam-se sobre os seus próprios assuntos."
Mia Couto e José Eduardo Agualusa

Um acesso desigual à vacina, associado à desinformação e ao negacionismo seria o combo perfeito para o nascimento da nova variante, embora até o momento os cientistas não tenham dados para afirmar que o ômicron, de fato, tenha nascido na África do Sul.

O fechamento do mundo ocidental para a África ocorre no mesmo mês de dois outros importantes acontecimentos nas relações entre o continente africano e os países ocidentais. No início de novembro, os presidentes da França e do Benim concluíram, após meses de negociação, a devolução dos objetos históricos saqueados do antigo reino do Daomé durante a conquista colonial francesa, no final do século 19. Juntamente com seu exército, composto em suas fileiras pelas ahosi, as "amazonas", o rei daomeano, Benhazin, resistiu ao avanço das tropas francesas, mas acabou derrotado pelo exército do general Dodds. Durante a conquista de Abomé, capital do reino, tronos reais, portas do palácio do rei e esculturas, entre outros objetos, foram saqueados como butim de guerra e mais tarde levados aos museus da França, como o Quai Branly, em Paris.

Artefatos roubados pela França serão devolvidos ao Benim

O debate sobre as restituições não é de agora. Há algum tempo, as nações africanas - e não apenas elas - discutem com as nações europeias o retorno de suas obras de arte e peças icônicas. O movimento ganhou força em 2020, com as manifestações do Black Lives Matter e a crescente contestação ao legado colonial europeu no continente. Algumas nações europeias se mostraram resistentes à ideia da restituição. O Reino Unido, que detém uma das maiores coleções de bronze, ainda não se manifestou sobre o tema.

Outras têm se mostrado mais abertas à ideia. Entre idas e vindas, a França restituiu 26 objetos, um número tímido. Além disso, o país se comprometeu em contribuir financeiramente para a construção de um museu onde tais peças possam ser adequadamente expostas. A Alemanha é outra que se prepara para retornar objetos de bronze do antigo reino do Benin para a Nigéria.

Também no mês de novembro, o Brasil, por sua vez, dá exemplo de como não se portar. O embaixador do Brasil na Guiné-Bissau será retirado da representação diplomática após interferência de sua esposa em assuntos internos e episódios de racismo contra os guineenses, chamados de "macacos" e que só serviriam para "fazer sexo, não para trabalhar".

A representação brasileira no país foi aberta em 1974, após o reconhecimento da independência de Portugal. Uma embaixada da Guiné Bissau, em Brasília, demorou 37 anos. A maior parte das relações entre os dois países está baseada na cooperação técnica nas áreas da saúde, agricultura e educação. Sobre esse último ponto, destaca-se a presença de estudantes guineenses no Brasil em cursos de graduação e pós-graduação, a maioria vinculados à Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), que também conta com professores daquele país. A Unilab é a universidade com maior número de estudantes guineenses fora da Guiné Bissau.

As relações econômicas entre os dois países resultaram, em 2017, no valor de quase quatro milhões de dólares em artigos exportados pelo Brasil. No campo da política, por sua vez, há um alinhamento entre o presidente da Guiné-Bissau, Umaro Sissoco Embaló, e Jair Bolsonaro (sem partido), presidente do Brasil. O episódio na embaixada brasileira é mais do que apenas uma gafe diplomática, mas reflexo do tipo de relação estabelecida entre o Brasil e os países africanos.

As relações entre o Brasil e a Guiné Bissau seguem a história do comércio transatlântico de africanos escravizados. Estimativas recentes mostram que entre 1500 e 1850, ano do fim oficial do tráfico negreiro, pelo menos 177 mil africanos da região desembarcaram aqui como escravizados.

A pilhagem brasileira na África foi ainda mais brutal em outras regiões. De Angola, os navios negreiros brasileiros trouxeram com vida 3,5 milhões de pessoas para o trabalho forçado nas plantações de açúcar e café, na mineração e no trabalho de rua nos centros urbanos. Do Togo, Benim e Nigéria foram outros 900 mil. No total, desembarcaram nos portos brasileiros 5,1 milhões de pessoas. A exploração brasileira do continente africano foi reconhecido mais tarde pelo ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT), que em visita oficial ao Senegal em 2005 pediu perdão pela escravidão africana.

A política de aproximação com a África, no entanto, tem sido progressivamente descontinuada. As representações em Serra Leoa e Libéria foram fechadas em 2020, tendo seus serviços deslocados para Gana. Mesmo aquelas embaixadas em países que possuem laços históricos com o país não estão em melhor situação. Em 2015, a embaixada do Benim, na África Ocidental, sofria de penúria, sem recursos para pagar as contas de luz - que ameaçava ser cortada - e de telefone. O embaixador à época pagou as contas do próprio bolso.

O continente africano não precisa de uma postura paternalista da comunidade internacional. É preciso compreender que, no contexto da pandemia, a vacinação em massa oferece uma barreira de transmissão ao Coronavírus. A disponibilização de doses para os países africanos, mais do que um gesto humanitário, filantrópico, é um esforço global para conter novas variantes da doença - ou nos esquecemos das cepas identificadas no Reino Unido, Brasil e Índia? A reativação dos preconceitos contra o continente africano só demonstra que, apesar dos esforços recentes, ainda há um longo e difícil caminho no estabelecimento de relações verdadeiramente igualitárias entre a África e os outros continentes.

*Carlos Silva Jr. é integrante da Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros