O que está por trás do termo 'cidadão de bem', usado pelos presidenciáveis?

Juliana Carpanez

Do UOL, em São Paulo

  • Arte/UOL

Este é um texto de bem, publicado por jornalistas de bem para ser lido por pessoas de bem.

É assim, com o uso da genérica e flexível expressão "de bem", que alguns presidenciáveis vêm tentando criar identificação com seus potenciais eleitores. O termo não é novo. Mas, nos últimos anos, com a polarização e tantas questões urgentes a serem combatidas, ficou fácil colocar-se ao lado das pessoas corretas, das pessoas "de bem". A questão, aqui, é que os valores embutidos nessa frase variam de acordo com quem a fala e também quem a ouve.

"O 'cidadão de bem' virou um produto quase comercial na política e na consciência social. Os políticos utilizam porque todo eleitor se considera um cidadão de bem. É um conceito aberto e agrega a todos: sempre nos consideramos um cidadão ao lado dos valores positivos em oposição aos canalhas, ladrões, corruptos etc. Os políticos fazem uso comercial com intenção de voto", afirmou ao UOL o historiador Leandro Karnal, professor da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). 

Em um contexto de campanha eleitoral, a vantagem dessa expressão está em uma "estratégia discriminatória que não se apresenta como discriminação", na visão de Egon Rangel, professor de análise do discurso do Departamento de Linguística da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo).

Ele explica: "Separam-se os campos do 'eu-nós' e dos 'outros' como dois campos opostos, do bem e do mal; definem-se as características positivas do primeiro por oposição às negativas do segundo, sem, contudo, especificar no que consiste o bem a que a expressão se refere; não se diz quem está de um lado e quem está do outro." Essa também pode ser uma explicação do uso tão comum desse termo nas discussões políticas em redes sociais.

A expressão, continua Rangel, interpela o interlocutor a escolher o "lado do bem" com uma ideia de "junte-se aos bons e será um deles". Nesse sentido, Karnal define os seguidores do conceito como arrogantes: "A 'pessoa de bem' é a pior invenção da espécie humana. Em primeiro lugar, porque ela é arrogante, ela não pertence à humanidade. Ela aponta o dedo, cumpre aquele papel que Jesus denuncia nos fariseus: olham um cisco no olho do outro, mas não olham uma trave que está no seu", afirmou o historiador em palestra recente

O cidadão de bem no discurso dos presidenciáveis

A título de curiosidade, "Good Citizen" (bom cidadão) era o nome de um periódico publicado nos EUA, entre 1913 e 1933, pela líder religiosa Alma White, que apoiava o grupo supremacista Ku Klux Klan. No livro "The Second  Coming of The KKK: The Ku  Klux  Klan of the  1920s  and  the  American  Political  Tradition" (A Segunda Vinda da KKK: a Ku Klux Klan de 1920 e a Tradição Política Americana, em tradução livre), a historiadora Linda Gordon, da Universidade de Nova York (EUA), afirma que o periódico se destinava exclusivamente à KKK. Um grupo "divinamente ordenado", na visão da influente reverenda.

Jargão, agrado e dicotomia

Para Luciana Salgado, especialista em marketing político na internet e professora da FGV-RJ (Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro), "cidadão de bem" é um jargão dos discursos políticos referente ao eleitor de um candidato --seja ele quem for.

"O termo faz um agrado, acaricia a população, caracterizando quem quer o melhor de maneira bastante genérica. Por isso, cai bem nos discursos propositivos dos políticos. Aqueles em que, em vez de criticar, o candidato faz propostas positivas sobre os benefícios que vai oferecer, como vai mudar a vida daqueles eleitores [de bem]", afirma Salgado, que não vê um cunho negativo em seu uso.

Já para Esther Solano, socióloga e professora da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), a pessoa de bem é aquela que segue os valores tradicionais: a ética, a ordem e a moral. Trata-se de um resgate moralista que funciona como reação às pautas progressistas em curso, como o feminismo, os movimentos negros e também LGBT.

"Se esse discurso ["de bem"] tem uma penetração tão grande é porque, historicamente, o Brasil se configurou nessa dicotomia do cidadão de bem e o bandido, o inimigo. Há uma estrutura muito desigual, de raça e de classe, por trás disso", resume a professora, que pesquisa conflitos sociais no mundo contemporâneo.

Segundo Solano, o "de bem" estará geralmente associado a pessoas brancas, de classes média e alta (como os supremacistas do "Good Citizen", publicado no século passado). O inimigo, por sua vez, será negro e periférico. "Esses conceitos são muito abertos, polissêmicos. Tanto que o bandido também pode ser o político de determinado partido, o estudante que fuma maconha", exemplifica.

No confronto entre bem e mal, continua Solano, cria-se uma lógica de guerra em que o cidadão de bem deve ser protegido. E contra o inimigo vale tudo: inclusive matá-lo. "Isso estabelece a lógica de que nem todo mundo é cidadão. Pode parecer uma ideia positiva a de haver um cidadão de bem, mas essa dicotomia é muito perigosa para a democracia", afirma a pesquisadora. 

Karnal detalha o que, a seu ver, seriam os valores por trás da expressão "de bem". Uma pessoa trabalhadora, honesta, pai/mãe de família, temente a Deus, não assassino, não drogado e não envolvido com maracutaias políticas. "O curioso é isso estar sempre associado a um valor ético. Ser pai deriva de ser fértil e ter capacidade reprodutiva, não de ser ético. Ser temente a Deus implica uma adesão a um conjunto de crenças que me marcam e não, exatamente, uma pessoa ética. Tanto que os tementes a Deus levaram a inquisição adiante", lembra o historiador.

Presença garantida nos discursos

Reinaldo Polito é mestre em ciências da comunicação e professor do curso de marketing político e propaganda eleitoral da USP (Universidade de São Paulo). Ele afirma que, embora essa expressão seja usada há muito tempo, ela passou a ser empregada com mais frequência. Hoje, o termo ganha espaço ao se falar de "pessoas honestas", "de boa índole", "de bom caráter". "Ela não substitui outros termos e expressões, mas convive com eles. Por ser novidade, pelo momento histórico e político em que vivemos, seu uso acaba prevalecendo, até como bordão de campanha política."

"Vivemos um momento em que os homens de bem estão na moda, vivemos um momento em que o discurso do bem está na moda", continuou Karnal, naquela mesma palestra.

Para Polito, um termômetro é a maior frequência dessas palavras nos discursos de seus alunos. Num determinado momento, exemplifica, passam a achar sofisticado dizer "empoderamento feminino" e não haverá uma única aula em que esse termo será deixado de fora. "Paradigma", "ações republicanas" e "fazer a lição de casa" são outros exemplos de quem já teve presença garantida antes do "de bem". Ele considera este um processo de imitação: quando pessoas tidas como referência adotam essas palavras, os demais acompanham.

"Chamo a atenção dos alunos para o cuidado com o uso dessas novidades, pois, dependendo do tipo de público para quem irão falar, poderão passar a imagem de alguém sem personalidade, que apenas segue o que os outros começaram a fazer, sem um texto próprio."

Na corrida das eleições presidenciais, Jair Bolsonaro (PSL) é quem emprega com mais frequência o "de bem" ao falar sobre pessoas que poderão usar armas para se defender ("eu sou favorável que o cidadão de bem tenha posse de arma de fogo"). Marina Silva (Rede) fez uso em um embate com Bolsonaro na RedeTV! ("a coisa que uma mãe mais quer é ver um filho ser educado para ser um cidadão de bem") e também para falar de possíveis aliados ("homens e mulheres de bem"), assim como Ciro Gomes, do PDT ("se eu for eleito, o Carlos Lupi terá no meu governo a posição que quiser, porque eu tenho convicção que ele é um homem de bem").

Não há registros recentes de Geraldo Alckmin (PSDB) fazendo o mesmo e Guilherme Boulos (PSOL) emprega o termo com ironia ("aí está o 'cidadão de bem'. Este é síndico de um condomínio de onde partiram tiros contra ocupação do MTST. 1 ferido", tuitou).

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