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Ex-presa política diz ter sofrido aborto após tortura no Dops, no Rio

A ex-militante Maria Helena Guimarães Pereira conversa com o presidente da Comissão Estadual da Verdade, Wadih Damous - Divulgação/Comissão Estadual da Verdade
A ex-militante Maria Helena Guimarães Pereira conversa com o presidente da Comissão Estadual da Verdade, Wadih Damous Imagem: Divulgação/Comissão Estadual da Verdade

Hanrrikson de Andrade

Do UOL, no Rio

24/11/2014 13h32

A ex-militante Maria Helena Guimarães Pereira, que esteve presa em 1972 na sede do Dops (Departamento de Ordem Política e Social), no centro do Rio de Janeiro, revelou à Comissão Estadual da Verdade, nesta segunda-feira (24), ter sofrido um aborto depois de ser espancada nas dependências do antigo centro de repressão.

A testemunha acompanhou uma diligência da comissão no prédio histórico, que é propriedade da Polícia Civil do Rio. Em conversa com o presidente da CEV, Wadih Damous, ela afirmou "contestar a tese de que no Dops só havia tortura psicológica".

"Eu apanhei muito aqui. Apanhei tanto que eu perdi um filho aqui dentro. Depois eu engravidei de novo e meu filho nasceu morto”, relatou ela. “Tive que fazer terapia sete dias por semana."

Segundo Damous, a visita de reconhecimento ao Dops foi um “importante exercício de memória”, na mesma linha do que já havia sido feito nas instalações do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna) e no HCE (Hospital Central do Exército).

“Há uma relevância simbólica no sentido de reconhecer esses locais associados ao regime militar [1964-1985]. Mas também tem uma grande importância pessoal para os presos políticos. Só soubemos hoje, por exemplo, que em 1972 ainda existiam episódios de tortura física dentro do Dops. Isso foi possível graças ao relato da Maria Helena”, afirmou o presidente da comissão.

Ao entrar na sala onde disse ter sido torturada, Maria Helena não conteve as lágrimas e precisou interromper o depoimento. Ela também se desentendeu com o assessor de relações institucionais da Polícia Civil, Gilbert Stivanello, que acompanhou toda a diligência. Segundo ela, a presença dele no local era um sinal de desrespeito aos presos políticos.

Ela também não gostou de uma fala do representante da instituição, que disse que "ficar dois dias sem dormir era uma tortura psicológica", e não física. O policial, por sua vez, afirmou à imprensa que estava ali apenas para ajudar. Stivanello disse que tentou explicar para a ex-militante que a tortura psicológica já estava "inerente ao pacote", pois só o fato de ser preso e levado ao DOI-Codi já seria considerado uma tortura psicológica.

Durante os seis meses em que esteve no depósito de presos São Judas Tadeu, a carceragem feminina que funcionava dentro do Dops, a ex-militante declarou ter presenciado outras sessões de tortura. Porém, para a Polícia Civil, tais fatos podem ter ocorrido de forma isolada, já que o Dops funcionava à sombra do DOI-Codi, o principal centro de tortura do regime.

"Eu não vou negar a tortura física, pois a gente sabe que ela pode ter ocorrido. No entanto, nenhum preso político conseguiu até agora apontar o local exato, as salas onde teriam ocorrido esses fatos. Se eles forem relatados futuramente, é claro que a gente vai consignar e resgatar", declarou Stivanello.

Na versão do ex-preso político e jornalista Cid Benjamin, que esteve no local em 1970, o Dops era "um paraíso perto do inferno do DOI-Codi". Ele disse não ter testemunhado casos de tortura no tempo em que esteve detido. "Nós negociávamos com os carcereiros e eles compravam jornal para a gente. Tínhamos como ir ao banheiro. Enfim, era uma outra realidade bem melhor em comparação com o DOI-Codi", contou. "Mas isso não diminui a importância desse local, onde muitas pessoas foram torturadas e morreram em outras ocasiões."

“Maracanã” e “Ratão”

Durante o regime militar, o Dops tinha uma função mais administrativa, pois passavam por lá muitos presos políticos a fim de prestarem depoimento às autoridades da época. Isso ocorria em um pavilhão com duas salas situado no segundo andar do prédio. A carceragem feminina, conhecida como depósito de presos São Judas Tadeu, funcionava no térreo. Já no terceiro andar, funcionava a carceragem masculina, que abrigava cerca de 30 pessoas, segundo relatos dos membros da CEV.

Dois espaços são lembrados com frequência: a cela “Maracanã” e o “ratão”, como os carcereiros chamavam a solitária (cela de isolamento). “Eu cheguei a ficar no ratão durante sete dias porque me recusei a assinar os documentos que eles pediam para eu assinar. Era um espaço quase medieval, completamente fechado, pequeno e estreito, sem qualquer ventilação. Eu tinha que dormir na diagonal, mesmo sendo uma pessoa baixa. (...) Era como um cofre”, afirmou Benjamin, que posteriormente seria trocado junto com outros presos políticos por um embaixador alemão, sequestrado à época por militantes revolucionários.

Benjamin disse ainda lembrar como era o funcionamento da carceragem masculina. Além da possibilidade de receber visitas, o que não ocorreu em outros centros de repressão, havia comunicação verbal e visual dentro do Dops, além de um relacionamento minimamente cordial com os policiais que lá trabalhavam. “Daqui de dentro eu ajudei a fazer lista com os presos que seriam trocados pelo embaixador alemão”, lembrou.

Já a cela Maracanã era assim chamada por ser a maior da carceragem e por abrigar o maior número de presos: aproximadamente dez. De acordo com Benjamin, o clima no Dops era de “mais alívio do que terror”. “O medo de qualquer preso era sair daqui e ir para o DOI-Codi”, relatou ele.

“Durante o tempo que eu fiquei aqui, fui o único a ser mandado para o isolamento. Porém, de maneira geral, existia um clima tranquilo. Por exemplo, eu toco violão. Na época, me arrumaram um violão e eu matava o tempo dessa forma”, finalizou.

Disputa pelo prédio

O presidente da CEV, Wadih Damos, afirmou que, até o fim deste ano, vai se reunir com o governador do Estado, Luiz Fernando Pezão (PMDB), para negociar a cessão do prédio do Dops a fim de que, no local, seja construído um centro de memória da repressão. “A exemplo do que acontece em outros países, com prédios públicos que serviram de palco para tortura, assassinatos e desaparecimentos políticos, queremos que o Dops seja transformado nesse centro de memória”, disse.

“A polícia, contudo, insiste em dizer que esse prédio é dela e quer transformá-lo em um museu da Polícia Civil”, completou Damous, referindo-se ainda a um compromisso público assumido pelo ex-governador Sérgio Cabral (PMDB) em maio de 2013. Na ocasião, Cabral afirmou: "Vamos restaurar o prédio da rua da Relação e dar àquele local a dignidade da verdade". “Nós vamos cobrar essa promessa”, comentou o presidente da comissão.

Já a Polícia Civil informou não abrir mão do edifício, cuja relevância histórica para a instituição é tida como inegociável, na versão de seu assessor de relações institucionais, Gilbert Stivanello. Atualmente, o prédio está passando por obras de reforma de infraestrutura, financiadas pela empreiteira WTorre como parte de um TAC [Termo de Ajustamento de Conduta]. O TAC foi assinado porque a construção de um prédio da Petrobras na região trouxe danos estruturais ao Dops.

Ao fim das obras, a Polícia Civil quer encontrar empresas interessadas em colaborar com a construção de um novo Museu da Polícia Civil, que hoje funciona em um pequeno e malconservado espaço ao lado do Dops. De acordo com Stivanello, a polícia quer preservar e expor tudo o que for relacionado à repressão, mas designando espaços específicos onde teriam ocorrido fatos relacionados ao regime.

“Esse prédio tem uma história que vai muito além das atividades do Dops durante a ditadura militar. Há uma forte ligação com as religiões africanas [que eram perseguidas pelas autoridades no começo do século XX], com a evolução do trabalho de perícia, enfim. A nossa ideia é fazer um grande museu que conte com todas as páginas da história desse prédio, e não apenas a repressão política”, declarou.

Para Damous, porém, a possibilidade de dividir o espaço com a Polícia Civil não é considerada. “Temos um sentimento contrário a essa ideia apresentada por eles. Achamos que o mesmo espaço não pode abrigar perseguidos e perseguidores. Isso não acontece em lugar algum do mundo”, comentou.