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Corrupção é a 'vitória da canalhice', diz professor de ética

"Não acredito que a ocasião faz o ladrão. Ela apenas revela ladrão", diz Barros Filho - Divulgação
"Não acredito que a ocasião faz o ladrão. Ela apenas revela ladrão", diz Barros Filho Imagem: Divulgação

Daniel Buarque

Do UOL, em São Paulo

11/04/2015 18h29

O desvio de bilhões de reais em ações ilegais na Petrobras e a sonegação de outros bilhões por quadrilhas que atuavam junto ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) são uma demonstração da "vitória da canalhice", segundo Clóvis de Barros Filho, professor livre-docente de ética da USP, consultor e autor de livros como "Corrupção: Parceria Degenerativa", "Ética e Vergonha na Cara" (ambos pela ed. Papirus) e "Somos Todos Canalhas" (Casa da Palavra).

Um mês após centenas de milhares de pessoas irem às ruas em protestos por todo o Brasil, mais manifestações estão agendadas para este fim de semana. Apesar de os protestos terem um tom contrário ao governo, o combate à corrupção deve estar no centro das demandas das pessoas que vão às ruas, assim como na última vez.

Segundo Barros Filho, entretanto, as operações Lava Jato e Zelotes, que têm denunciado corrupção no Brasil, são uma demonstração de avanço no combate a ações ilegais e podem ajudar a criar um clima de "medo" entre as pessoas que agem de forma corrupta, incentivando-as a serem mais éticas. "O Brasil tem melhorado muito seu rastreamento da atitude canalha", disse, em entrevista ao UOL.

Apesar das mais recentes revelações, Barros Filho diz acreditar que é possível as pessoas serem honestas mesmo em situações em que a corrupção parece disseminada. "Pessoas bem informadas e corretas não têm preço."

UOL - Os escândalos de corrupção recentes dão a impressão de que a corrupção está espalhada por toda a sociedade, indo além da política. Qual sua opinião sobre isso?

Clóvis de Barros Filho - A corrupção é um caso clássico de vitória da canalhice sobre a ética. Tanto a parte ativa quanto a passiva acaba priorizando seus interesses, ambições e apetites em detrimento de uma relação que seria mais alinhada com princípios de convivência com a sociedade.

Na corrupção, há uma série de condutas marcadas pela canalhice, porque são condutas em que o agente age com consciência e de forma estratégica para satisfazer seus interesses, mesmo sabendo que a estratégia agredirá e piorará a convivência com a sociedade.

A corrupção é uma questão moral acima de tudo. Acredito que, mesmo que haja uma prática disseminada de corrupção, é possível alguém, por respeito a princípios morais, se recusar a jogar o jogo e agir de forma errada. Não acredito que a ocasião faz o ladrão. Ela apenas revela ladrão. Pessoas bem informadas e corretas não têm preço.

UOL - Existe algo relacionado à cultura brasileira na corrupção registrada no país? O Brasil é de alguma forma diferente do resto do mundo quando se trata de corrupção?

Clóvis de Barros Filho - Há uma tendência à canalhice, a uma conduta que procura satisfazer o agente em detrimento da sociedade, em qualquer lugar do mundo.

Todo homem é desejante, é ambicioso, é insatisfeito e sempre buscará mais do que tem. Buscará o que lhe faz falta. Ele pode fazer isso por caminhos socialmente autorizados, quase sempre caminhos de grande dificuldade, ou por caminhos socialmente desautorizados, que são facilitadores. É compreensível, ainda que inaceitável, que algumas pessoas procurem obter o que lhes faz falta por procedimentos menos exigentes. Essas características do homem são genéricas e independem de país.

O que muda é a reação da sociedade, e o entendimento subjetivo da reação social, ou seja, a percepção de como a sociedade vai reagir. O que muda de uma sociedade para a outra é a sensação de que, se você pisar na bola, você vai pagar por isso. Isso muda de país para país e é gerador de um temor que muitas vezes faz com que as pessoas evitem agir de forma corrupta.

No Brasil se tem hoje cada vez mais condições objetivas de reações sociais para averiguar e perseguir a corrupção, como estamos vendo de forma rara na história do país. O Brasil tem melhorado muito seu rastreamento da atitude canalha, mas essas medidas ainda não foram percebidas como totalmente eficazes e não geram ainda o temor suficiente para diminuir a iniciativa de corrupção.

UOL - Como seria possível diminuir a corrupção no Brasil hoje?

Clóvis de Barros Filho - Há dois caminhos para diminuir a corrupção: o primeiro é a implementação de um programa de formação moral nas escolas. Algo diferente da “Moral e Cívica” dos militares, mas que discuta valores com vistas à criação de uma competência para discussão de ética e cidadania. Além disso, é preciso haver investimento nas instituições responsáveis pela investigação e julgamento de ações de corrupção, com maior autonomia e eficácia.

Precisamos trabalhar com a formação e com o medo. Diminuindo o risco de corrupção dos dois lados do processo.

UOL - Avaliando as últimas notícias sobre prisão de envolvidos em corrupção nas operações Lava Jato e Zelotes, o senhor acha que é possível diminuir a corrupção no Brasil?

Clóvis de Barros Filho - Sou otimista. Temos que comemorar o que está acontecendo atualmente. Temos que celebrar o fato de que pessoas poderosas estejam sendo investigadas, julgadas e punidas. Esse tipo de coisa não aconteceria muito pouco tempo atrás.

Estávamos dentro de um quintal todo sujo e ninguém queria ir lá fora olhar. Agora começamos a sair de casa para enfrentar a sujeira e fazer a faxina grossa. Como toda faxina, ela espalha sujeira e tem um primeiro momento esteticamente muito feio. Mas isso que acontece agora é condição para que comecemos a ter um quintal cada vez mais limpo e que pode até se tornar um lugar melhor para as gerações futuras.

UOL - As notícias mais recentes sobre corrupção na Petrobras colocam em evidência a responsabilidade de políticos, funcionários da estatal e empresários. Pode-se avaliar que um funcionário público é um corrupto pior de que o corruptor? É possível apontar uma parte como maior responsável de que a outra por um ato de corrupção?

Clóvis de Barros Filho - Em tese, não. Sem uma das partes, a corrupção não aconteceria. É uma combinação de causas, e a exclusão de uma delas inviabiliza a corrupção.

Dizer que o sujeito passivo é mais responsável pela corrupção por ser ele que delibera contra a sociedade em proveito próprio e oferecendo benefícios é esquecer que o sujeito ativo da corrupção também toma iniciativa visando ganho pessoal com consciência da lesão que levará à sociedade.

Penso que é impossível mensurar comparativamente as responsabilidades. Existe uma corresponsabilidade, e não dá para dizer quem uma é maior de que a outra, pois as condutas obedecem a apetites diferentes caso a caso.

UOL - No caso da Petrobras é possível saber quem é mais responsável pela corrupção?

Clóvis de Barros Filho - Toda corrupção é uma espécie de inversão de identidades, em que o indivíduo delibera vendendo ou comprando seu poder de decisão. No caso da Petrobras, temos um caso de relação desequilibrada, que evoluiu de tal maneira que o detentor do poder consegue condicionar a sobrevivência do outro participante na relação no jogo econômico. Assim, ele exerce seu poder e constrange a uma conduta sem a qual há uma exclusão.

Nesse caso se tem uma situação um pouco diferente, em que a responsabilidade parece claramente maior do agente detentor do exercício do poder. É uma situação muito particular, pois é uma empresa que não participa do sistema de mercado ortodoxo. Isso dá ao agente dessa corrupção uma força de constrangimento que, se as condições de competição fossem outras, ele não teria.

UOL - A corrupção é pior quando tem envolvimento de funcionários públicos?

Clóvis de Barros Filho - De certa maneira, a responsabilidade do agente privado requer uma avaliação ética mais ampla do próprio papel do sistema capitalista como forma de gerir as relações econômicas dentro de uma sociedade. O agente de uma instituição privada pode agir de forma a ofender a sociedade tanto quanto o agente público. O agente não pode ser ético com o dono do capital ao mesmo tempo em que agride a sociedade, ou a própria presença da empresa na sociedade é problemática.

O fato de o servidor público supostamente estar a serviço de toda a sociedade estabelece com a sociedade um vínculo mais imediato do que o servidor privado, que tem como primeiro nível de ética os acionistas, os donos do capital. O servidor público tem uma responsabilidade mais direta dada a proximidade entre o agente e a sociedade. Essa proximidade, entretanto, não tira do agente privado uma responsabilidade ética com a sociedade.

UOL - O atual debate sobre a corrupção leva a questionamentos sobre o político que é corrupto para ter benefícios pessoais e o político que age de forma corrupta para gerar benefícios políticos. Pode-se dizer que é um mal menor quando o desvio não busca interesses pessoais?

Clóvis de Barros Filho - Não. Isso não ameniza em nada. Se os beneficiários da relação corrupta auferem ganhos a qualquer lado em prejuízo do outro, isso em nada muda a natureza inaceitável do ponto de vista ético da conduta realizada.