Topo

"Desempregado" e advogado de uma cliente só: a rotina de Cardozo na defesa de Dilma

O advogado José Eduardo Cardozo pedala em frente ao Palácio da Alvorada, "quartel-general" da presidente afastada, Dilma Rousseff - Kleyton Amorim/UOL
O advogado José Eduardo Cardozo pedala em frente ao Palácio da Alvorada, "quartel-general" da presidente afastada, Dilma Rousseff Imagem: Kleyton Amorim/UOL

Gustavo Maia

Do UOL, em Brasília

08/07/2016 06h00Atualizada em 08/07/2016 14h46

"Posso responder perguntas a tarde inteira. Eu sou um desempregado e tenho uma cliente só."

O aviso, dado em tom de piada a jornalistas ao fim de longa entrevista no último dia 30 de junho no Palácio da Alvorada, em Brasília, mostra que o processo de impeachment da presidente afastada, Dilma Rousseff (PT), não afetou o humor do advogado José Eduardo Cardozo.

A noite anterior marcara o fim de uma maratona de 45 depoimentos realizados em 13 sessões da comissão especial que julga o processo no Senado. As reuniões para ouvir as testemunhas --39 delas convocadas pela defesa-- duraram o equivalente a quase quatro dias completos.

Ministro da Justiça por pouco mais de cinco anos e advogado-geral da União nos últimos dois meses da gestão da petista, entre março e maio, Cardozo, 57, diz estar trabalhando mais fora do governo do que dentro.

"Nunca trabalhei tanto assim numa causa", declara o advogado, que em 2016 completa 35 anos na profissão e é procurador licenciado do município de São Paulo.

O ritmo é uma loucura. É uma coisa completamente alucinada. Você não ouve quatro, cinco testemunhas em um dia, por três ou quatro horas cada uma. Isso não existe

José Eduardo Cardozo, advogado de Dilma Rousseff

Para o ex-ministro, dois fatores explicam a intensidade do caso: a complexidade de um processo de impeachment de uma presidente da República e "toda uma pressão" exercida por atores políticos para acelerá-lo. "Isso exigiu muito da defesa. Você tem que acompanhar as sessões, fazer recursos, preparar perguntas. Tem sido uma coisa absolutamente exaustiva", relata.

"Então você imagina ter que ajustar 370 páginas em 72 horas... Naquelas noites, por exemplo, eu cheguei a dormir só duas, três horas. E no dia da entrega da defesa no Senado a impressora do Alvorada [residência oficial da Presidência da República] ainda pifou”, lembra.

Cardozo entrega defesa de Dilma no Senado

UOL Notícias

Nos dias dos depoimentos das testemunhas, a equipe trabalhou em torno de 12 horas por dia. "Além das sessões, tem as reuniões em que você tem que analisar todas as situações possíveis", explica o advogado.

A rotina do Legislativo não lhe é estranha. Depois de três mandatos consecutivos como vereador de São Paulo, tendo presidido a Câmara Municipal, foi deputado federal, pelo PT, por oito anos, de 2003 a 2011.

De graça

Envolvido na defesa de Dilma desde março, quando se tornou ministro-chefe da AGU (Advocacia-Geral da União), o ex-ministro da Justiça anunciou em abril que pretendia continuar à frente da defesa da petista, de graça. "Não cobraria nada dela", disse, na ocasião.

"Não tinha cabimento deixar a causa. Acabaria com a defesa dela. Não seria justo nem correto", analisou Cardozo, na semana passada, em entrevista ao UOL. O único "honorário" que recebeu de Dilma pelo trabalho, conta o advogado entre risadas, foi o empréstimo de uma bicicleta, já que ele perdeu o direito de usar carro oficial ao deixar o governo.

"Comprei um capacete e, quando eu venho encontrar com ela [no Alvorada], pego a bicicleta e venho numa reta", diz o ex-ministro, que mora a pouco mais de dois quilômetros do palácio --aproximadamente dez minutos de pedaladas. "Só não uso quando estou de terno e gravata."

O momento do "pagamento" foi presenciado pelo advogado Gabriel de Carvalho Sampaio, que está sempre ao lado de Cardozo durante o processo.

Cardozo pedala com bike emprestada por Dilma

UOL Notícias

"Foi engraçadíssimo. Estava chegando para a reunião e de repente vi a presidenta chegando com uma bicicleta. Até ajudei a segurar para ela colocar a cestinha, ver se o pneu estava bom. Ela falou que era um empréstimo", relata Sampaio, que foi secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça e chegou a chefiar a pasta temporariamente durante viagem do ex-ministro, no ano passado.

Logo após o afastamento de Dilma, no dia 12 de maio, Comissão de Ética Pública da Presidência da República autorizou que Cardozo cumpra "quarentena" de seis meses e continue recebendo o salário de ministro --R$ 30,9 mil-- durante o período. A ele foi permitido permanecer defendendo a presidente afastada "em caráter excepcional, como advogado particular".

Segundo a lei que regula o benefício, as autoridades públicas têm naturalmente, conforme as funções que exercem, acesso a informações que não são de conhecimento público e devem se abster de usar tais dados em suas atividades profissionais ou empresariais. A comissão analisa cada caso individualmente.

Além do ex-ministro, outros cinco advogados participam do processo. Flávio Crocce Caetano foi coordenador jurídico da campanha de Dilma nas eleições de 2014 e é professor da PUC-SP. Breno Bergson Santos e Marthius Sávio Lobato também atuaram como advogados de Dilma. Lobato também defendeu o ex-diretor de marketing do Banco do Brasil Henrique Pizzolato, condenado no julgamento do mensalão.

Já Bruno Espiñeira Lemos é procurador licenciado do Estado da Bahia e é advogado do ex-governador e ex-ministro da Casa Civil Jaques Wagner (PT). Renato Ferreira Moura Franco é especialista em direito penal.

"São todos voluntários. Ninguém ganha absolutamente nada para isso, nem um centavo. São colegas que têm trabalhado muito. Nem despesa de táxi a gente paga", declara Cardozo. Segundo ele, os advogados se "aproximaram por conta da causa".

Advogados acostumados a atuar em grandes casos, que pediram à reportagem para falar sob a condição de anonimato, estimaram que uma causa como a do impeachment custaria pelo menos centenas de milhares de reais, mas provavelmente entraria na casa dos milhões.

"Por ser ex-ministro e ex-advogado-geral da União, Cardozo teria condições de cobrar R$ 5.000 por hora de trabalho. O processo todo poderia sair por R$ 8 milhões, contando com os auxiliares", disse uma fonte. "Mas, pela projeção e notoriedade que um caso como esse podem dar, tenho certeza que haveria uma fila de grandes advogados dispostos a trabalhar de graça", completou.

O processo, entretanto, tem o seu preço para os auxiliares. "Considerando que, quando acabam as sessões, têm tarefas para fazer, em semanas de audiência eu posso cravar 20 horas de trabalho por dia. E nos fins de semana também temos trabalho", conta Gabriel Sampaio.

No dia 17 de junho, ele renunciou da condição de advogado de Dilma para se tornar assistente parlamentar na liderança do PT no Senado, com salário de R$ 9.456,13, e fazer a defesa jurídica de lá. É neste local que muitas vezes a equipe se reúne antes ou depois das sessões da comissão do impeachment.

Sampaio disse ainda que antes de assumir o cargo no Congresso atuava pro bono (de graça) por "total identificação com o projeto da presidenta e com a democracia". "Só não continuei nesta condição por uma questão profissional, para conseguir me manter em Brasília. Os outros colegas [do processo] já têm uma situação advocatícia mais estável."

Cardozo: 'História não perdoa violência a democracias'

UOL Notícias

Cardozo diz confiar na decisão dos senadores, apesar de fazer ressalvas à atuação dos parlamentares. "Eu tenho que estar confiante porque a razão está do nosso lado. Mas muitas vezes alguns senadores não quiseram nem ouvir o que as testemunhas falavam. A testemunha fala 'A' e eles dizem que ela acabou de dizer 'B'. Isso demonstra uma motivação puramente política, e com esse quadro eu não sei dizer o que vai acontecer. Se fosse um julgamento comum, em condições normais de justiça, seria caso para absolvição sumária", declara.

Durante o processo, o ex-ministro tem falado com Dilma "quase diariamente" na residência oficial da presidente. "Só não consigo quando as sessões são muito alongadas." Segundo ele, a presidente afastada assiste a algumas audiências – "não dá para ser todas porque aquilo ali é interminável"--, dá opiniões e faz sugestões.

Retórica e gafe

Reconhecido por sua eloquência, o advogado tem sido elogiado até mesmo por senadores favoráveis ao impeachment de Dilma. "Ele tem uma retórica terrível... Se jogasse futebol, doutor [José] Eduardo [Cardozo] seria Ronaldinho. Ele olha para um lado, toca pro outro. É um verdadeiro maestro", declarou José Medeiros (PSD-MT), em uma sessão da comissão de impeachment.

Senador compara Cardozo a Ronaldinho

UOL Notícias

Opositores do PT e parlamentares que defendem o impeachment, no entanto, não dão trégua à atuação de Cardozo. O senador Ricardo Ferraço (PSDB-ES) reclamou que o advogado estava se excedendo e precisava ser disciplinado pelo presidente da comissão, Raimundo Lira (PMDB-PB). Já a senadora Ana Amélia (PP-RS) disse ter ouvido que o ex-ministro parecia estar comandando a reunião do colegiado.

José Medeiros disse ter pedido a sua equipe que analisasse as notas taquigráficas de uma determinada sessão e afirmou que o advogado chegou a intervir 183 vezes na ocasião  "Qual é o papel do advogado da presidente? É ou extinguir este processo de impeachment, ou delongá-lo ao máximo, de forma que volte a sua cliente ao posto. Para isso, ele já mostrou que tem habilidade de sobra, para isso ele tem feito o possível e o impossível", declarou.

O ex-ministro frequentemente alega que está apenas exercendo o direito de defesa da presidente afastada. Para garantir o número desejado de depoentes arrolados pela defesa, apresentou recurso a Lewandowski --que preside o processo de impeachment-- e teve o requerimento aprovado, apesar das queixas de senadores pró-impeachment.

Em uma das intervenções, no entanto, Cardozo cometeu uma gafe que repercutiu dentro e fora da comissão. Enquanto listava nomes de pessoas que apoiavam a causa da presidente, acabou citando o "ilustre jurista" "Thomas Turbando Bustamante" --em vez de Thomas da Rosa Bustamante.

Tratava-se de uma brincadeira da equipe de advogados, que incluiu a citação em um dos documentos da comissão. O papel com o nome fictício, que gera uma cacofonia de conotação sexual, não deveria ter sido levado à sessão, mas foi incluído por engano pelo advogado de Dilma.

Advogado de Dilma erra nome de jurista

Band Notí­cias

Dias depois, o ex-ministro foi alvo de uma brincadeira enquanto almoçava com o ex-advogado-geral da União Luís Inácio Adams em um restaurante de Brasília.

Um cliente que estava na mesa ao lado pagou a conta --de R$ 300-- da mesa dos ex-integrantes do governo Dilma e escreveu um bilhete na nota: "Cardozo, uma cortesia do ilustra jurista Thomas Turbando. "Se eu soubesse, teria tomado um vinho mais caro", brincou Cardozo.

Pós-impeachment

Questionado se gostaria de voltar a chefiar um ministério ou ocupar qualquer posto no governo federal, Cardozo não precisa pensar duas vezes: "Sinceramente, não". Após o desfecho do impeachment, ele diz pretender se associar a um escritório em São Paulo e voltar a investir na carreira acadêmica.

O advogado, que também é professor da PUC-SP, conta que tem uma tese de doutorado para escrever em Salamanca, na Espanha, pela USP (Universidade de São Paulo).

Na proposta apresentada por ele em 2014, depois das eleições, quando "nem imaginava o que ia acontecer", o tema do trabalho seria a crise na separação de poderes no século 21. E um dos tópicos, o impeachment.

É como se eu tivesse adivinhado. Minha orientadora reclama que eu ainda não consegui fazer nada, mas pelo menos a parte do impeachment já está pronta