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MPF denuncia médico legista por fraude em necropsia durante ditadura

O militante do Partido Operário Revolucionário Trotskista, Rui Osvaldo Aguiar Pfutzenreuter, morto pela ditadura militar em 1972 - Reprodução/Internet
O militante do Partido Operário Revolucionário Trotskista, Rui Osvaldo Aguiar Pfutzenreuter, morto pela ditadura militar em 1972 Imagem: Reprodução/Internet

Flávio Costa

Do UOL, em São Paulo

16/08/2016 17h54

O MPF-SP (Ministério Público Federal em São Paulo) denunciou na segunda-feira (15) à Justiça Federal o médico legista Antonio Valentini, 82, por supostamente forjar o laudo necroscópico de um preso político em 1972 e ocultar a verdadeira causa da morte. Valentini trabalhava no IML (Instituto Médico Legal) de São Paulo e foi responsável por examinar o cadáver do dirigente do Partido Operário Revolucionário Trotskista, Rui Osvaldo Aguiar Pfutzenreuter, capturado e morto por agentes da repressão.

Em nota, o MPF afirma que “apesar dos claros sinais de tortura no corpo, o médico legista atestou, com informações falsas, a versão oficial de que o militante morrera após troca de tiros com policiais.” Em entrevista ao UOL, por telefone, Valentini negou a acusação de ter forjado o laudo da morte de Pfutzenreuter e disse que tudo o que fez durante sua carreira como médico legista “foi digno aos olhos de Deus”.

O processo tramita na 4ª Vara Criminal Federal de São Paulo. O MPF afirma que a conduta de Valentini "é imprescritível e impassível de anistia" e pede que a Justiça o condene pelo crime de falsidade ideológica e cancele sua aposentadoria. Outros acusados de participação no caso não podem ser responsabilizados judicialmente, pois já morreram, entre eles o médico legista Isaac Abramovitc e o então diretor do IML-SP, Arnaldo Siqueira.

Morte no centro de repressão

Pfutzenreuter foi preso e torturado em 15 de abril de 1972 a mando do então chefe do DOI em São Paulo (Destacamento de Operações de Informações do 2º Exército), Carlos Alberto Brilhante Ustra, que morreu em outubro do ano passado. De acordo com outros presos no DOI naquele dia, o militante morreu após ser submetido a intensas sessões de tortura durante os interrogatórios, com a aplicação de golpes e choques elétricos e o uso de pau de arara.

O coronel reformado e ex-comandante do DOI-CODI em São Paulo Carlos Alberto Brilhante Ustra - Sérgio Lima/FolhaPress - Sérgio Lima/FolhaPress
O ex-comandante do DOI-CODI em São Paulo Carlos Alberto Brilhante Ustra,falecido em outubro de 2015
Imagem: Sérgio Lima/FolhaPress

O corpo de Rui Osvaldo Aguiar Pfutzenreuter foi encaminhado ao IML-SP com pedido de exame que indicava a versão dos agentes para a morte, afirma a procuradora da República Ana Letícia Absy, que assina a denúncia. De acordo com a versão oficial, o militante teria morrido ao reagir a uma abordagem policial e trocar tiros com os oficiais no Parque São Lucas, zona leste da capital paulista. O pedido de necropsia trazia anotada a letra “T”, utilizada por órgãos de repressão para identificar os mortos por motivos políticos, considerados “terroristas”.

De acordo com a denúncia do MPF-SP, dez dias depois, Antonio Valentini emitiu o laudo necroscópico que apontou anemia aguda traumática como causa da morte, provocada por tiros no braço e no peito. Um parecer elaborado a pedido da Comissão Estadual da Verdade do Estado de São Paulo contestou o laudo. Peritos chegaram a conclusão de que o médico, além de ignorar as lesões causadas pela tortura, deixou de citar informações essenciais, a exemplo do trajeto das balas e sinais de hemorragia externa. Segundo os especialistas, o documento é “de péssima qualidade técnica, omisso e incompleto”.

“Diferentemente do que consta dos registros oficiais, Rui foi privado de sua liberdade, torturado e morto, sem poder oferecer qualquer espécie de resistência, como ocorrera em diversos casos semelhantes durante o período de repressão aos dissidentes da ditadura militar que assolou o país. Por essas razões, com vistas a ocultar tais circunstâncias, é que o laudo elaborado pelo denunciado omitiu informações de tamanha relevância”, escreveu Absy.

Irmão do militante, Rogério Pfutzenreuter, afirma que a ação do MPF confirma que Rui Osvaldo foi assassinado por agentes da repressão, após ser torturado, como já atestou a Comissão Nacional da Verdade. Rogério acusa o médico legista Antonio Valentini de ser cúmplice da ditadura militar. “Os limites da nossa democracia não permitem que esses criminosos paguem por esses crimes cometidos durante a ditadura militar", afirmou.

Outro lado

O nome do médico legista Antonio Valentini consta na lista de 377 pessoas indicadas como responsáveis por graves violações de direitos humanos durante o regime militar pelo relatório final da CNV, divulgada em dezembro de 2014.

Valentini chegou a ser alvo de um processo de cassação de seu registro no Conselho Regional de Medicina de São Paulo, mas a Justiça determinou o arquivamento do caso devido à prescrição na esfera administrativa. Por telefone, o médico legista afirmou ao UOL que é inocente e que a situação política brasileira prejudicou sua carreira. "Nunca forjei qualquer laudo. Às vezes, eu sinto vergonha de ser brasileiro".

“Eu sou um indivíduo corretíssimo. Nunca me envolvi em política. Todas as coisas que eu fiz foram dignas aos olhos de Deus. Ficam remexendo, é uma coisa triste”, afirmou Valentini. "Cabe ao médico legista determinar a causa médica da morte. Não é seu papel dizer se determinado caso foi homicídio ou suicídio, por exemplo", acrescenta.

O médico legista afirma que assinou no IML-SP "muitos laudos necroscópicos como segundo perito", sem participar efetivamente na necropsia. "Era uma praxe da época. Nós assinávamos em confiança ao trabalho do colega, que assinava como o primeiro perito. Como médico eu sempre respeitei a vida humana", declarou.