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Problema do fundo partidário não é lei, mas cultura política, diz Gilmar Mendes

Leandro Prazeres

Do UOL, em Brasília

21/10/2016 06h00

Modificar a lei que regula a utilização e distribuição do fundo partidário não é o caminho para que esses recursos públicos sejam mais bem aplicados. Essa é a opinião do ministro Gilmar Mendes, presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), entidade responsável, em última instância, por aprovar ou reprovar as contas dos partidos políticos brasileiros.

O fundo partidário, cujo nome oficial é Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos, é um montante repassado todos os anos pelo poder público para os partidos formalmente registrados junto ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral). Para receber o dinheiro, que serve para atividades partidárias, as siglas devem estar com suas prestações de conta em dia. Em 2015, o fundo distribuiu R$ 867 milhões aos partidos.

Nesta semana, o UOL publicou uma série de reportagens em que mostra como os três partidos que mais recebem o fundo -- PT, PMDB e PSDB -- utilizam esses recursos. Há desde viagens de dirigentes pagas com dinheiro público a financiamento de churrascos e contratação de assessores.

Veja abaixo o que disse o ministro ao UOL sobre fundo partidário, eleições e financiamento de campanha:

UOL - O fim das doações empresariais aumenta a importância da fiscalização sobre o fundo partidário?
 

Gilmar Mendes - Com a percepção de que o modelo de doação privada estava em risco, os partidos passaram a aumentar o fundo partidário, talvez no propósito de suprir a eventual falta de recursos vindos da iniciativa privada com recursos públicos. Não é uma quantidade pequena de recursos -- nós já estamos aí nos avizinhando de R$ 1 bilhão. O fundo continua servindo para manter as finalidades básicas do partido, atender ao custeio da fundação, as despesas com propaganda, mas também está servindo certamente para contribuir para a participação do partido nas eleições.

Partido "caseiro" pode receber R$ 500 mil

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Em 2014, foram distribuídos R$ 407 milhões aos partidos entre fundo partidário e multas. Em 2015, esse número saltou para R$ 867 milhões. Os partidos estão drenando recursos demais do contribuinte?

É muito difícil responder dessa maneira. É preciso que o contribuinte saiba que esses recursos estão sendo transferidos para os partidos. E essa tendência que se vê é uma tendência de ampliação. E aí o distinto público tem que se pronunciar. Qual a sua disposição de financiar esse modelo? Especialmente esse modelo altamente desorganizado. Nós estamos com 28 partidos com representação no Congresso Nacional. Nós temos ao todo 35 partidos. Todos eles recebem parte do fundo.

Vou dar um exemplo que ilustra bem isso. Um desses pequenos partidos, sem um representante na Câmara dos Deputados, recebe por mês algo próximo a R$ 500 mil. O partido funciona na casa do presidente, a secretária-geral é sua mulher, a outra burocrata do partido é sua filha, em suma, é uma instituição familiar e tem uma renda próxima a R$ 500 mil. [Em 2013, reportagem do jornal "O Globo" revelou que o PTC emprega em sua Executiva nacional 14 parentes do presidente, Daniel Tourinho]

Certamente o público não fica satisfeito de saber que os recursos destinados a essa atividade cívica estão sendo destinados a essa finalidade.

Considerando que há uma tendência de aumento dos recursos do fundo partidário, qual a sua avaliação sobre a legislação que regulamenta o uso, não a distribuição, do fundo partidário? O senhor acha que ela é suficientemente rígida?
 

Ela atende aos propósitos. Mas o problema, como a gente sabe no Brasil, não é só de legislação. É também de cultura política.

Nós saímos de um modelo autoritário [na ditadura], em que tínhamos um sistema bipartidário, e partimos para algo que foi se tornando mais ou menos ilimitado. O sistema partidário gerou esse monstrengo que aí está.

Recentemente nós tivemos por exemplo o fenômeno do Partido da Mulher Brasileira, que recebeu, numa dessas janelas, 24 adesões. E a partir daí ele passa a ter um ativo: ele tem direito a receber o correspondente do fundo partidário ao número de parlamentares. Esse passa a ser o critério. Aqui [no TSE] nós fizemos depois uma releitura que essas pessoas passaram pelo partido como cometas, e ficaram lá pouco tempo, nós fizemos uma releitura da nossa resolução dizendo que o partido só se beneficiaria daqueles parlamentares que lá ficaram, que eram dois. Mas veja que o sistema é muito vulnerável a esse tipo de prática.

O problema não é necessariamente de legislação, mas das pessoas que aplicam.

Na nossa apuração, conversamos com alguns especialistas em transparência e alguns defenderam uma legislação para reger o uso dos recursos, porque embora sejam entidades privadas, esses partidos utilizam recursos públicos. O senhor é a favor de alguma disposição nesse sentido, que restrinja ou aumente o controle sobre como o dinheiro é utilizado?

Não tenho segurança quanto a isso e diria até que ficaria desconfiado. As licitações ocorrem Brasil afora nos entes públicos, e nós estamos envolvidos em um mar de corrupção. Não vai ser por aí que nós vamos resolver essa questão.

Eu tenho a impressão de que os próprios partidos deveriam bem aplicar os recursos. Mas não é isso que ocorre.

Se nós não temos tido capacidade de fiscalizar adequadamente o sistema estatal, nós não estaríamos diante desse mega-escândalo envolvendo a Petrobras e outras empresas. Se isto ocorre num sistema com Petrobras, que tem todas as auditorias, isso vai acabar por ocorrer nos partidos.

Eu não acredito que vai ser a criação de leis como leis de licitação para partidos ou coisas do tipo que vai torná-los mais transparentes. A transparência devia ser o próprio propósito do partido. Nós [TSE] fazemos uma fiscalização aqui, estamos melhorando a fiscalização. Estamos rejeitando as contas que são apresentadas.

Os nossos controles políticos são a posteriori. Talvez nós possamos melhorar isso, torná-los mais efetivos. Mas é preciso que isso seja inserido no próprio ethos do partido.

"Controle pode ser mais efetivo", diz Gilmar Mendes

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Estamos em 2016 e as contas anuais dos partidos políticos ainda são entregues em papel e só podem ser acessadas fisicamente na sede do TSE. Como o senhor avalia o grau de transparência do uso e da fiscalização do fundo partidário?

Eu tenho a impressão de que aqui esse controle [social] é deficitário. A Justiça Eleitoral faz aquilo que lhe cabe. Como eu disse, é uma análise a posteriori, o Ministério Público dá parecer e depois nós emitimos juízo, no sentido da aprovação ou da reprovação, ou da aprovação com ressalvas. Aplicamos multa, suspendemos o uso do fundo partidário. Nós estamos nos empenhando para que todos os processos relativos à Justiça Eleitoral, daqui a pouco, todos eles sejam eletrônicos.

Mas nós temos que convencer os partidos de que, se eles pretendem ter uma atuação exemplar, nos negócios do Estado, eles têm também que ter uma gestão exemplar com os recursos públicos. O fundo [partidário] é público.

Mas o senhor acredita que os partidos, por livre e espontânea vontade, publicariam suas contas sem que eles fossem obrigados a isso?

Deveria ser assim, porque esses recursos são públicos. Nós também ampliamos aqui no TSE o quadro de pessoal técnico na área de contas, e isso também vai nos permitir fazer com maior celeridade esse exame. Nós hoje temos convênios com órgãos como Tribunal de Contas, Receita Federal… E na medida do possível também estamos utilizando esses recursos e esses convênios para fazermos as análises das contas. Acho que nós estamos aprimorando o sistema.

O senhor é um defensor público de algum tipo de cláusula de barreira para partidos. Que tipo de cláusula o senhor defende e como evitar que ela não acabe sufocando partidos menores que tenham um um perfil mais ideológico?

Essa é uma questão que temos que discutir com toda abertura. Não vai haver forma de fazer omelete sem quebrar ovos. A cláusula de barreira mais conhecida é a cláusula de barreira alemã. Partidos que não conseguem 5% ficam fora do Parlamento. Nós vamos ter que fazer algo semelhante no Brasil. Talvez não tão radical, não de 5%, mas talvez em um percentual determinado. Já se tentou isso no passado, o Supremo depois deitou isso no chão. Agora tem essas propostas de emenda.

O que não dá é se ter 28 partidos, alguns com pequeno número de parlamentares, com baixa representatividade. Eu vi agora a PEC (Proposta de Emenda à Constituição), essa da iniciativa do senador [Ricardo] Ferraço (PSDB-ES) e do senador Aécio (Neves, PSDB-MG), pelo menos ela é um início para uma discussão importante e sinaliza uma consciência no sentido de estabelecer algum limite.

"Lava Jato deve impulsionar reforma política"

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Apesar dessa PEC, o senhor acredita que esta composição do Congresso, especificamente, tem interesse em aprovar leis que possam restringir o acesso de partidos menores tanto ao Congresso quanto ao fundo partidário?

É muito difícil você convencer o parlamentar a fazer uma reforma que possa afetar o seu interesse.

Aqui, porém, nós temos um estímulo especial, que é a Lava Jato. Nunca o sistema político esteve tão exposto, as entranhas foram reveladas de maneira tão explícita como agora, graças a essa mega-investigação. Isso me parece que torna o sistema muito vulnerável e faz com que as pessoas de grupos mais responsáveis percebam que é inevitável a realização da reforma. Eu poderia dizer, em princípio, os partidos não vão se solidarizar a um esforço de reforma. Mas a Lava Jato faz com que nossa avaliação fique um pouco diferente.

O senhor tem sido um crítico do fim das doações empresariais e esse posicionamento tem recebido críticas de diversos segmentos. Afinal, por que o senhor é contra o fim das doações de empresas?

Não se trata disso, aí é que está a confusão. A mim me parece que uma reforma como esta, relativa ao financiamento de campanha, ela tem que se fazer tendo em vista o modelo eleitoral que se vai desenhar. E nós fizemos a reforma do financiamento de campanha deixando todo esse modelo eleitoral existente.

Veja: nós temos agora eleições municipais [a entrevista foi concedida em setembro]. Como que eu faço para financiar este sistema? Com doações de pessoas físicas? Nós mudamos um sistema, no meio do jogo, às vésperas do processo eleitoral, sem alterar o sistema eleitoral. O que que acabou por ocorrer? A mudança de financiamento sem alterar o sistema. Essa é minha crítica básica.

Da forma como está a legislação, isso está praticamente empurrando os candidatos a praticarem caixa dois?

Eu tenho a impressão de que isso [caixa dois] é inevitável. Acaba por ocorrer. Estamos com uma legislação de forte teor simbólico. Eu estou só convencido de que aquilo foi um ato de voluntarismo. Não tem base na Constituição. Até porque é fácil de ver se, de fato, era inconstitucional a doação privada, de pessoas jurídicas, então nós teríamos que anular todas as eleições que foram realizadas.

"Ficha Limpa não melhorou nível do Congresso"

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Por que, na sua opinião, a Lei da Ficha Limpa é tão ruim, mas tão ruim, que, segundo o senhor mesmo, parece ter sido “feita por bêbados”?

Essa lei é de 2010. Nós estamos até agora discutindo a questão da rejeição de contas, que tipos de contas estavam rejeitadas ou não e quais eram as consequências em relação a prefeitos e gestores. Então é um dado que mostra já a baixa qualidade da lei. Foi uma lei casuística. Ela colocou lá que um parlamentar que renunciasse ao mandato para não responder a um processo ele ficava inelegível. Na verdade, foi uma lei que trouxe uma série de inelegibilidades que não fazem o menor sentido. Por outro lado, ela tem uma dificuldade de aplicação no caso das reprovações de contas.

Estamos todos perplexos. O Congresso atual foi eleito pela Lei da Ficha Limpa. Nós tivemos um melhor resultado?

O senhor acha que não?

Responda você mesmo. Nós temos hoje mais da metade do Congresso investigado pelo Supremo Tribunal Federal. Então isso está resultando em algo? É uma legislação simbólica. O Brasil tem que parar de ficar acreditando nesse tipo de legislação simbólica.

O senhor é conhecido, entre outras coisas, por suas declarações, algumas delas até citadas ao longo dessa entrevista. O senhor, em algum momento, se arrependeu de alguma dessas declarações polêmicas?

De jeito nenhum. Eu tenho na verdade bastante satisfação e faço de forma muito consciente. Eu já disse também que na vida pública a gente se qualifica pelos amigos que tem, obviamente, e pelos inimigos que de alguma forma a gente permite adquirir. Eu não uso palavras de baixo calão. Eu ficaria muito arrependido se eu xingasse uma pessoa ou coisa do tipo. Mas eu procuro ser bastante veraz e dizer as coisas que eu penso com bastante tranquilidade e às vezes com uma certa veemência. Mas estou muito feliz comigo mesmo. Em paz.

Gilmar Mendes fala sobre polêmicas: "estou feliz comigo mesmo"

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