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18 pontos críticos do projeto de abuso de autoridade sob o olhar de um procurador

O procurador Rodrigo Janot (esq.) entrega sugestões da PGR ao senador Eunício Oliveira - Pedro Ladeirai/Folhapress
O procurador Rodrigo Janot (esq.) entrega sugestões da PGR ao senador Eunício Oliveira Imagem: Pedro Ladeirai/Folhapress

Felipe Amorim

Do UOL, em São Paulo

05/03/2017 04h00

Por mais de um mês, um grupo especial formado por quatro procuradores, um promotor de Justiça e três juízes se debruçou sobre um texto com o objetivo de fazer frente ao projeto de abuso de autoridade hoje em tramitação no Senado. Formado a pedido do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, o núcleo de trabalho deu origem a um anteprojeto de lei de abuso de autoridade entregue na semana passada ao Congresso.

O procurador da República Helio Telho é membro do grupo de combate à corrupção do Ministério Púbico Federal em Goiás e participou da elaboração do anteprojeto de lei. Em entrevista ao UOL, Telho explica por que a Procuradoria defende um texto alternativo ao do Senado e critica pontos do texto de Requião que permitiriam o chamado “crime de hermenêutica”, ou seja, que juízes ou agentes públicos fossem punidos por decisões adotadas a partir de sua interpretação sobre a aplicação da lei.

A principal preocupação da PGR (Procuradoria Geral da República) é que o projeto no Senado permita que agentes públicos, como juízes e promotores, não sejam penalizados por sua atuação regular nos processos. Por exemplo, que decisões ou pedidos de investigação posteriormente derrubados ou negados sirvam para que os investigados processem os investigadores por abuso.

O relator do projeto no Senado, Roberto Requião (PMDB-PR), apresentou seu parecer à CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) nesta terça-feira (29). A data de votação ainda não foi definida pela comissão.

Crítico à proposta de Janot, Requião afirma que o texto do procurador-geral propõe uma espécie de absolvição antecipada de juízes e promotores por seus atos nos processos.

Os riscos para agentes públicos

O texto em tramitação no Senado tem 31 artigos em que são definidos os crimes de abuso de autoridade e outros dois que alteram punições previstas na Lei de Interceptações Telefônicas e no Estatuto do Advogado.

11.mai.2016 - Senador Roberto Requião (PMDB-PR) discursa durante sessão que vota admissibilidade do processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff (PT) e encaminha voto favorável ao processo - Beto Barata/Agência Senado - Beto Barata/Agência Senado
O relator do projeto de lei, senador Roberto Requião (PMDB-PR)
Imagem: Beto Barata/Agência Senado

Em 11 desses dispositivos, Helio Telho diz haver risco de que agentes públicos sejam punidos por sua interpretação da lei e, em outros três casos, o procurador diz que o projeto pode enfraquecer a atuação das polícias.

O procurador também critica a fixação de data para a libertação de presos temporários e a punição ao chamado “flagrante preparado” e às violações a algumas prerrogativas dos advogados, por entender ser desnecessária a criminalização desses dois últimos pontos.

Veja em seguida um resumo das principais críticas do procurador ao texto do Senado. Para ler o anteprojeto da Procuradoria, clique aqui. Para o texto de Requião, aqui.

Punição à interpretação da lei

A principal crítica ao texto apresentado ao Senado está num dispositivo do artigo 1º que, segundo o procurador Helio Telho, abre brecha para que agentes públicos sejam punidos por sua interpretação da lei.

O projeto defendido por Requião faz uma ressalva com o objetivo de que juízes e promotores, por exemplo, não possam ser penalizados por qualquer ato praticado nos processos em que atuam.

Mas, segundo Telho, a redação dada é imprecisa e, na prática, permite a punição de decisões que sejam posteriormente negadas por um juiz ou modificadas por uma instância superior da Justiça.

O texto que está no Senado diz que: "Não constitui crime de abuso de autoridade o ato amparado em interpretação, precedente ou jurisprudência divergentes, bem assim o praticado de acordo com avaliação aceitável e razoável de fatos e circunstâncias determinantes, desde que, em qualquer caso, não contrarie a literalidade desta lei”.

A expressão “avaliação aceitável e razoável”, segundo o procurador do MPF, é o que torna o texto impreciso.

“Quem que vai dizer o que é aceitável e o que é razoável? Se você tem um juiz que vai tomar uma decisão que pode afetar interesse de alguém poderoso, ele vai ficar com medo de que aquela prisão, aquela busca e apreensão, venha a ser considerada inaceitável ou desarrazoada. Essa redação que Requião está propondo cria uma situação de medo nos juízes e nos promotores”, afirma Telho.

O anteprojeto da Procuradoria diz que os atos de autoridades não podem ser considerados abusivos com base na “divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas, desde que fundamentada” e se praticados no “exercício regular das funções”.

Segundo Telho, a redação dada pela PGR garante que a simples divergência de entendimento jurídico não seja usada para punir agentes públicos.

Essa redação que Requião está propondo cria uma situação de medo nos juízes e nos promotores”, afirma o promotor Helio Telho

Prisão preventiva

O projeto do Senado pune o juiz que decretar a prisão preventiva ou outras medidas de privação da liberdade em “manifesta desconformidade com as hipóteses legais”, diz o texto. Também passa a ser crime ordenar a condução coercitiva (quando o investigado é obrigado a depor) de forma “manifestamente descabida”.

Segundo Helio Telho, as expressões usadas pelo texto não são claras e permitem que, se a decisão for posteriormente derrubada por um tribunal, o juiz seja denunciado por abuso de autoridade. “Isso acaba com as operações policiais”, diz.

O projeto da PGR também pretende punir prisões arbitrárias, mas define o crime a partir da “intenção deliberada” de constranger o investigado.

“Privar alguém de liberdade ordenando ou executando a medida fora das hipóteses legais com a intenção deliberada de constrangê-lo indevidamente no curso de investigação ou processo judicial”, é como o projeto de Janot configura esse tipo de abuso.

Para o procurador, a exigência de que fique provado que havia a intenção do juiz ao cometer o abuso dá mais segurança à atuação regular dos magistrados. “Abuso é o exercício do poder com desvio de finalidade”, diz.

Provas e grampos

O texto de Requião diz que seria abuso de autoridade “proceder à obtenção de provas por meios manifestamente ilícitos ou fazer uso de provas de cuja origem ilícita se tenha conhecimento”.

Segundo o procurador, é comum que a legalidade de provas obtidas seja questionada posteriormente no processo, com decisões contrárias ou favoráveis nas instâncias superiores da Justiça. Para Helio Telho, isso abriria uma brecha para que juízes e promotores possam ser processados por abuso, mesmo tendo utilizado a prova quando não havia questionamento sobre sua legalidade.

O texto da PGR não aborda a questão das provas ilegais.

Outro ponto criticado por Telho é o tratamento dado aos grampos telefônicos em investigações. O projeto do Senado diz ser crime “divulgar gravação ou trecho de gravação sem relação com a prova que se pretenda produzir, expondo a intimidade ou a vida privada, ou ferindo honra ou a imagem do investigado ou acusado”.

O procurador afirma que o texto está mal redigido pois é comum as interceptações captarem conversas alheias à investigação, e que o texto do Senado parece proibir que as conversas flagradas possam servir de base a outras investigações.

O projeto da Procuradoria define dessa forma como abuso a divulgação de grampos: “Ofender, sem justa causa, a intimidade, a vida privada, a honra ou a imagem de investigado, acusado ou parte, divulgando conteúdo de gravação de comunicação telefônica ou telemática que não guarde relação com a administração da justiça, a ordem pública ou outro interesse público”, diz o texto.

Investigações

O texto do Senado diz ser crime dar início a investigações sem “qualquer indício da prática de crime”. O procurador Helio Telho afirma que essa redação pode, na prática, inibir as investigações, pois muitas delas são iniciadas justamente em busca de provas.

“Você instaura a investigação justamente para colher provas e indícios de crime. Você recebe uma notícia de que um crime aconteceu, você tem que investigar esse crime, e investigar é exatamente colher provas e indícios. Com isso aqui, só vou poder abrir uma investigação se a pessoa que me denunciar um crime trouxer a prova”, diz.

“Quer dizer, desse jeito o cara diz: eu vi um cara atirando no outro e jogando o corpo no rio. Ah, não vou poder investigar porque não trouxe o corpo, não trouxe a arma do crime”, pergunta o procurador.

Já o projeto sugerido pela Procuradoria afirma que a abertura de investigações só será crime de abuso de autoridade se feita “sem justa causa fundamentada e contra quem o sabe inocente”, diz o texto.

Telho também critica o projeto do Senado por punir quem realizar investigações “com abuso de autoridade”, segundo diz o texto. Para o procurador, a expressão é vaga e abre brecha para que qualquer investigação seja alvo de contestações por abuso.

Algema; algemado - João Wainer - arquivo/Folhapress - João Wainer - arquivo/Folhapress
Imagem: João Wainer - arquivo/Folhapress

Algemas

O procurador critica ainda pontos do texto que, segundo ele, podem limitar o poder de atuação das polícias e forças de segurança.

Um deles diz ser crime de abuso o uso de algemas quando não houver “manifestamente” resistência à prisão ou ameaça de fuga.

Para Helio Telho, o texto é controverso, porque o policial também pode ser punido por omissão caso o preso consiga fugir. “Se o policial estiver em dúvida, ele tem que poder algemar”, diz.

O projeto da Procuradoria tipifica de outra forma o abuso no uso das algemas, ao dizer que é crime algemar o preso “sem justa causa e com o fim deliberado de constrangê-lo indevidamente ou provocar sua exposição vexatória”, diz o texto.

Prisão temporária

O projeto no Senado também prevê que os mandados de prisão temporária passem a ser emitidos com a definição do dia em que o preso deve ser libertado. Para o procurador do MPF, isso pode, na prática, estimular que os alvos dos pedidos de prisão fiquem foragidos até a data prevista para a libertação.

A prisão temporária é decretada normalmente para auxiliar o cumprimento de outras medidas de investigação, como mandados de busca e apreensão, e tem normalmente prazo de cinco dias.