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'Linchamento virtual' de políticos é legal e legítimo? Pode ser crime? Especialistas respondem

Guilherme Azevedo

Do UOL, em São Paulo

14/12/2017 04h00

A prática tem se tornado mais frequente: cidadãos confrontam nas ruas e em espaços públicos políticos acusados ou investigados por corrupção e, depois, compartilham a abordagem nas redes sociais. Mas isso é uma manifestação legal e legítima do ponto de vista do direito, da ciência política e da ética? A reportagem do UOL ouviu sete entrevistados para comentar o caso.

Em comum, os ouvidos apontam a falta do sentimento de representatividade da população com relação à classe política e afirmam que esse comportamento pode ser excessivo --e até crime.

O caso mais recente envolveu o senador Romero Jucá (PMDB-RR), que viajava em um voo de Brasília para São Paulo, na última quarta-feira de novembro. Com um telefone celular em mãos e gravando a cena, a passageira interpela o presidente do PMDB e alvo de investigações na Operação Lava Jato: "O senhor conseguiu estancar a Lava Jato, foi? Salvou seus amigos canalhas?", perguntou.

Era uma alusão à frase do senador sobre "estancar a sangria" gravada em conversa com o ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado. O "estancar" seria interromper as investigações mediante um "grande acordo nacional", que incluiria o impeachment de Dilma Rousseff (PT).

O vídeo da passageira foi publicado na página pessoal dela no Facebook e repercutiu. O senador disse que iria processá-la.

O cidadão pode ser processado?

Renato Opice Blum, advogado e coordenador do curso de direito digital do Insper-SP, afirma que incidentes a exemplo do constrangimento de Jucá podem se caracterizar como abuso de direito e se tornar ato ilícito.

Isso é tratado especificamente no artigo 187 do Código Civil, que diz: "Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes".

Opice Blum diz que o caso também pode ser enquadrado nos artigos 12 a 21 do capítulo 2 do Código Civil, que garantem os "direitos da personalidade".

"O abuso de direito é quando a pessoa passa um pouquinho, por exemplo, do direito que teria de filmar a outra, de conversar com ela. Usa esse direito de forma abusada e exacerbada. Percebe-se que ali o propósito é outro: é incomodar, azucrinar, para que a pessoa perca a paciência", descreve.

Se a ação do cidadão for considerada ilícita, ele poderá ser condenado a pagar indenização e proibido de repetir o ato, quando configurado como prática contumaz ou repetitiva. Essa prática seria, por exemplo, a de hostilizar um político recorrentemente.

O cálculo da indenização, a ser feito por um juiz, levaria em conta a proporção e o alcance do fato em si e a capacidade econômica dos dois lados da questão, com fins de inibir nova conduta delituosa.

"Legítima defesa da cidadania"

Para o jurista Wálter Maierovitch, entretanto, a reação da população nas ruas contra políticos não deve ser tratada como caso de polícia nem de Justiça.

"São manifestações em legítima defesa da cidadania. Mostram como se tornou abissal a distância da relação entre representante [político] e representado [população]", aponta. "Os políticos em geral conseguiram perder sua legitimação."

Segundo Maierovitch, embora o cidadão possa ser alvo de processo até com base na legislação que tipifica os crimes contra a honra (calúnia, difamação e injúria, previstos nos artigos 138, 139 e 140 do Código Penal), ele poderá reagir. E, na mesma ação judicial, pedir "a exceção da verdade", que significa dizer que pode provar as acusações que fez de que tal político é de fato corrupto, por exemplo.

Para o jurista, entretanto, as ameaças de processo por políticos são mais "jogo de cena", para sugerir que são inocentes e estão indignados.

"Limites da privacidade ainda não estão claros"

Michael Mohallem, professor da Escola de Direito do Rio de Janeiro, da FGV (Fundação Getulio Vargas), pondera dizendo que a privacidade de pessoas públicas em geral está menos protegida juridicamente do que a de cidadãos comuns. Mas, no caso específico de políticos, "os limites da privacidade ainda não estão claros".

Sobre o episódio com Jucá, Mohallem pontua que o político não se encontrava em ambiente de trabalho, no Congresso Nacional, por exemplo, e talvez aquele espaço, o de uma aeronave, não fosse o mais adequado para o protesto acontecer.

"Jucá nem podia sair dali, por se tratar de um avião, diferentemente de abordagem em um restaurante, de onde a pessoa pega e sai, fugindo do constrangimento", compara. "Por ser democracia, as pessoas são livres para se expressar até agressivamente? Ainda não se chegou a delimitar os casos."

Entretanto, ele diz que a "exacerbação" das discussões nas redes sociais "às vezes se capilariza para as ruas e potencializa a ira". Desse ângulo, diz, tende a se solidarizar com a manifestação da pessoa.

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Grupo protesta contra corrupção em frente a fórum da Justiça na avenida Paulista
Imagem: Bruno Rocha /Fotoarena/Folhapress

"Políticos não estão ouvindo a população"

Rogério Chequer, coordenador do movimento da sociedade civil Vem pra Rua, que organizou protestos pelo impeachment de Dilma e contra a corrupção da classe política, avalia que a crise mesmo é de "falta de representatividade".

"Os políticos tomam suas decisões sem ouvir a população e não podem reclamar da cobrança, da opinião contrária que recebem quando a população os encontra pelas ruas", defende.

Para Chequer, manifestações que obedeçam aos "limites do respeito, da não violência, são bem-vindas". "Eles [políticos] precisam estar abertos e dispostos a dialogar com a sociedade, faz parte do cargo. Não se justifica essa recusa ao diálogo."

O sociólogo Wagner Tadeu Iglecias, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP (Universidade de São Paulo) Leste, também analisa a multiplicação da hostilização a políticos como reflexo do desgaste da imagem e do alheamento da classe em relação ao dia a dia do eleitor.

"A classe política vive num outro universo, muito diferente do da população. As pessoas estão cansadas dela, das denúncias de corrupção e da má qualidade dos serviços públicos, sobretudo a classe média e alta, que julga pagar impostos demais sem retorno", descreve.

"Juntando tudo isso, resulta a revolta da população comum. [Manifestação como a feita contra Jucá] É o que o cidadão parece ter no momento."

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Manifestação de apoio à Lava Jato e contra políticos corruptos, em São Paulo
Imagem: Rahel Patrasso/Xinhua

Hostilizar políticos muda a cultura política?

Iglecias vê legitimidade nos protestos, mas diz ter dúvidas sobre a efetividade deles. "É claro que se consegue o constrangimento [dos políticos], mas será que isso muda a cultura deles?"

Para Roberto Romano, professor de filosofia e ética da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), essa hostilização "é prática lamentável" e não muda nada.

"A estrutura de governança e de poder não se modifica com essas manifestações, porque elas são periféricas. A pessoa simplesmente extravasa o seu sentimento de raiva e não muda a relação objetiva de poder. Essa é uma ação pré-política, não é política."

Exemplifica Romano: "Depois desse escracho, o Jucá mudou? Ele continua igual, com o mesmo comportamento palaciano, o mesmo encaminhamento heterodoxo do ponto de vista da ética".

Para o cientista político José Álvaro Moisés, da USP, as hostilizações vêm no bojo do avanço da cultura de intolerância verificado desde o impeachment, processo iniciado em dezembro de 2015 e concluído em agosto de 2016, com a ascensão de Michel Temer (PMDB).

"E essa cultura se revela dos dois lados, é tanto de esquerda quanto de direita. Não acreditam nos mecanismos de controle e querem fazer Justiça com as próprias mãos."

Para Moisés, a reação popular precisa ser institucional. "Tem o Ministério Público, a Defensoria Pública, a imprensa, precisa bater à porta dos partidos políticos", defende. "Essa prática, condenável e injustificável, só tem a criar mais conflito e desesperança. Um clima de que não tem saída, que é a pior solução que poderíamos ter."

Romano, da Unicamp, pondera que esses protestos, individuais, exatamente advêm de não encontrar partidos políticos, sindicatos e movimentos de fato organizados e articulados. Para o filósofo, a mudança virá do engajamento coletivo: "Junte-se a movimentos políticos, organize-se, proponha. Tem de militar do ponto de vista político e não apenas extravasar seu ódio momentâneo".