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Sensação é de um país aos pedaços, diz historiadora que biografou o Brasil

A historiadora Heloisa Starling em seu apartamento, em Belo Horizonte - Alexandre Rezende/Folhapress
A historiadora Heloisa Starling em seu apartamento, em Belo Horizonte Imagem: Alexandre Rezende/Folhapress

Beatriz Montesanti

Do UOL, em São Paulo

21/03/2019 17h03

Coautora de "Brasil: uma Biografia" (Companhia das Letras, 2015), a historiadora Heloisa Starling vê na prisão do ex-presidente Michel Temer o sintoma de que seu biografado, o país, está "caindo aos pedaços".

Para ela, a falta de informações sobre a prisão do ex-presidente apresenta-se como um risco para a democracia.

"Se nós perdermos a confiança na capacidade da política de construir a nossa vida pública, estamos abrindo caminho para soluções autoritárias. Esse é o risco", argumenta.

Com a ressalva de que historiadores "servem para falar do passado", a professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) comentou ao UOL o significado dos acontecimentos atuais, ainda que em meio "do olho do furacão", como diz.

Leia a entrevista:

Como a senhora vê essa prisão?
Heloisa Starling - Estou tão surpreendida quanto todo mundo. Gostaria de ter a informação, que acho que nenhum de nós tem, sobre as razões [para a prisão]. Qual é o risco objetivo que essas pessoas apresentam para a investigação? Qual é a ameaça?

É uma prisão que tem um efeito enorme dentro da vida pública brasileira e na sociedade. Posso achar o Temer bom ou ruim, mas é um ex-presidente do Brasil. É importante a gente entender o que está acontecendo.

Um ex-presidente da República que é preso na rua, isso tem que ter uma razão muito forte. É como se o Brasil estivesse caindo aos pedaços. Vamos de crise em crise e a sensação é de um país se desmanchando. Meu biografado está caindo aos pedaços.

Este é o segundo ex-presidente preso na Lava Jato. Quais são as consequências para a política brasileira?
São péssimas. No momento em que dois ex-presidentes estão presos, é uma sinalização para a sociedade muito ruim. A impressão é que a estrutura política do país está desmoronando. É um efeito para o mundo público e para a democracia muito arriscado.

Uma coisa são os erros ou acusações contra determinadas pessoas. Outra coisa é o risco de generalizar isso para o mundo público e a sociedade passar a acreditar que a vida pública é uma vida sem qualidade, sem virtude, que é uma vida corrupta. Isso é caminho aberto para o autoritarismo. Se nós perdermos a confiança na capacidade da política de construir a nossa vida pública, estamos abrindo caminho para soluções autoritárias. Esse é o risco.

A senhora viu esse mesmo risco na prisão do ex-presidente Lula?
A prisão de Lula foi feita em outras circunstâncias. Houve um processo de julgamento. Você pode concordar ou discordar das razões. Mas você teve um procedimento que é possível acompanhar.

Nesse caso [do Temer], não é possível acompanhar nada. Quando o Temer estava na vida pública, foi pedida a investigação, e o Congresso recusou, então não sabemos a quantas anda a investigação. Ele saiu, e de repente foi preso no meio da rua, como se fosse um meliante perigoso. Nesse aspecto é completamente diferente.

Do ponto de vista da historiadora, eu vou dizer: eu consigo acompanhar os procedimentos da Justiça em relação ao presidente Lula e sou capaz de interpretá-los. Não consigo fazer isso em relação ao ex-presidente Temer. E é importante que seja feito da forma mais transparente possível na sociedade porque nós não podemos construir a impressão para o povo brasileiro de que podemos abrir mão da vida pública, da vida política. Com risco para a democracia.

Há algum precedente como esse na história do Brasil?
As acusações de corrupção vão atravessar a história do Brasil. É um processo ativo da nossa história. Mas você não tem nenhuma situação de um presidente da República ser preso no meio da rua. A não ser se houvesse um golpe por razões políticas, mas não por acusação de corrupção. Também não tem referência na história do Brasil de um ex-presidente na cadeia também acusado de corrupção, e não por razões políticas. As prisões que ocorreram na história do Brasil passam por razões políticas.

E o que significa ter um presidente preso por corrupção?
Eu acho que é um risco. É difícil para mim, porque eu sempre acho que precisamos das informações para entender o que está acontecendo. Tem algumas coisas na conjuntura que são difíceis de enxergar.

Eu não sei quem se fortalece nesse momento, porque estamos no olho do furacão. Mas sei quem se enfraquece. Quanto menos informações nós tivermos sobre o que está acontecendo, e pouco cuidado de não criar uma postura generalista e moralista para a política, quem perde é a democracia.

A não ser que os demais Poderes da República entendam e consigam explicar para a sociedade. O que o Supremo acha disso? O que o Congresso Nacional acha disso? Aí vamos fortalecer as práticas democráticas.

Veja o momento em que o ex-presidente Michel Temer é preso em São Paulo

UOL Notícias

Qual o impacto da prisão de Temer para o presidente Jair Bolsonaro?
Também é difícil de pensar porque ainda não sabemos os desdobramentos da prisão no Congresso. Não sabemos qual vai ser a reação do partido do Temer [o MDB] e do Congresso Nacional.

Mas uma coisa que também é muito impressionante é que são três meses de governo novo e parecem séculos. Já podemos fazer retrospectiva. São três meses de crise contínua e isso não é bom para nenhum governo.

Eu posso dizer que talvez seja bom porque tira o foco do governo atual, mas não tira. Qual será a reação do presidente? Não acho que as duas coisas estão separadas, principalmente em um governo que vai de crise em crise.

Os caciques do MDB são investigados ou estão presos. O que está acontecendo com o MDB?
Tem um trabalho muito bom do [cientista político] Marcos Nobre que explica tudo. Ele fala do processo de "peemedebização". O PMDB [nome anterior do MDB] funcionou como sendo a força de sustentação de quem estivesse no poder, independente das razões de quem estava lá, desde que tivesse ganhos em troca. Ganhos de interesses do partido.

A "peemedebização" levou a essa corrosão do PMDB, que não tem mais nada a ver com o PMDB do Ulysses Guimarães, de Franco Montoro, Tancredo [Neves], desse pessoal que garantiu a redemocratização.

É um processo de corrosão do partido, provocado por 30 anos de uma forma de agir do partido que era essa. Em troca de determinados ganhos, apoiamos ou não, independente de quem está no poder. Nem por razões ideológicas, nem por projeto de país. E essa é a outra coisa que falta no país e me assusta, e isso é importante pensar para entender porque meu biografado está caindo aos pedaços: onde está o projeto de Brasil? Quem tem?